Utilizado nos séculos XIX e XX como um termo pejorativo e frequentemente designando homens que não se encaixavam na estrutura de “masculinidade” imposta pela sociedade, o termo “queer” foi apropriado pela comunidade LGBT para incluir o crescente reconhecimento sobre a diversidade dentro da própria comunidade. Na mesma tentativa de maior inclusão,  novas siglas surgiram nos últimos anos – LGBTQ+ e LGBTQIA+ são exemplos disso – e, para a segunda parte da série Coreia LGBTQ+, apresentamos para vocês parte da vivência queer na Coreia do Sul, através da perspectiva de Hayden Royalty, youtuber genderqueer que vem fazendo da plataforma um espaço para conscientizar sobre as muitas identidades existentes.

Leia aqui a primeira parte da série Coreia LGBTQ+, com entrevista do casal emoxsemo

Para quem não tem familiaridade, a palavra “queer” funciona como um “termo guarda-chuva”, abrangendo uma série de outras nomenclaturas, identidades de gênero e orientações sexuais que vão além dos termos reconhecidos pela maioria – como gay, lésbica, bissexual e transexual -. No caso da nomenclatura gender queer, com a qual Hayden se identifica, o termo abarca especificamente as identidades de gênero e é comumente abordada no Brasil sob o título de “não-binariedade”, ou seja, qualquer identidade de gênero que não se encaixe exclusivamente nas normas femininas e masculinas. 

Hayden conversou com a K4US, dividindo um pouco da vivência de uma pessoa não-binária e coreana-americana na Coreia do Sul. Confira abaixo!

NOTA: Infelizmente, temos um idioma baseado  na dicotomia feminina-masculino, o
que faz com que busquemos diferentes maneiras de incluir a população não-binária
sem remeter a gêneros. Uma dessas soluções é a utilização das linguagens neutras,
mas como estas não são de amplo conhecimento público e, em alguns casos, podem
causar confusão a grupos que, por algum motivo, podem ter dificuldade de
compreender a leitura, tivemos o cuidado de manter o texto com a maior
neutralidade possível.

Você pode se apresentar rapidamente para nossos leitores? 

Meu nome é Hayden Royalty. Eu sou uma pessoa genderqueer coreana-americana que atualmente reside em Seoul. Eu sou ativista, mobilizo a comunidade e crio conteúdo queer. Atualmente eu tenho um canal no YouTube onde compartilho minhas experiências como uma pessoa Queer Asiática Americana vivendo em Seoul e também crio conteúdo sobre educação sexual. Ultimamente eu tenho focado mais em trabalhos interpessoais, como mobilização da comunidade, e ajudei a planejar e sediar meu primeiro retiro queer em maio. Nós alugamos um Airbnb, tivemos refeições em grupo, e proporcionamos workshops para os participantes. Eu organizo eventos em que todos nós nos reunimos, comemos e assistimos filmes juntos, e eu espero realizar mais desse tipo de evento. Eu tenho 29 anos e me mudei para a Coreia por vários diferentes motivos. Me mudei para a Coreia por oportunidade de emprego, porque era bem difícil encontrar trabalho depois da graduação. Também me mudei para sair de um ambiente tóxico que estava afetando minha saúde mental e prejudicando meu relacionamento com meus pais depois que me assumi para eles. Também me mudei para a Coreia para começar um novo capítulo na minha vida. Por fim, me mudei para aprender mais sobre minha cultura coreana e a sociedade coreana moderna.

Primeiramente gostaríamos de nos certificar de que estamos usando os pronomes certos. No inglês você usa they/them, certo? No português não temos pronomes agêneros, o que torna difícil se referir a pessoas queer. Como é essa questão no Hangul? Você tem um pronome que melhor se encaixa com sua identidade? Considerando que até mesmo os honoríficos (unnie/oppa/noona/hyung) são baseados nos gêneros feminino e masculino, como pessoas não-binárias lidam com isso no dia a dia?

Sim, eu uso os pronomes they/them/their. No coreano as pessoas geralmente não usam pronomes de gênero. Sim, as pessoas usam unnie/oppa/noona/hyung. Eu não posso falar pelos nativos coreanos não-binários, mas quanto a mim como estadunidense, as pessoas costumam automaticamente me chamar pelo nome, ou se eu peço para que se refiram a mim apenas pelo nome e sem honoríficos, as pessoas compreendem e respeitam isso. Eu peço que me chamem apenas pelo nome e não usem os honoríficos porque, além dos honoríficos de gênero, eu prefiro não colocar ênfase na hierarquia de idade.

Você já declarou que não se identifica com nenhum gênero. Como foi o processo para entender isso? Quantos anos você tinha quando percebeu isso e quando se assumiu?

Na universidade, conheci outras pessoas genderqueer e muitas delas compartilharam suas jornadas e o significado de ser genderqueer para elas. Durante esse processo, senti que estavam falando sobre mim, porque tudo o que eu sentia, essas pessoas conseguiam colocar em palavras. Essa foi a primeira vez que eu senti que minhas experiências eram válidas e que eu não estava só. Eu percebi que era genderqueer quando tinha cerca de 20 anos e comecei a transição social.

Você disse que vem atuando como organizadora da comunidade. Como você chegou a isso e qual foi a experiência do retiro que você realizou? Você pode dividir com a gente o número de pessoas que participaram, por exemplo, seu intuito com o evento e o resultado dele?

Um colega e eu planejamos por dois meses tentando decidir as acomodações, alimentação, atividades e workshops. Nós não queríamos que tivesse um custo alto então fizemos um orçamento e esperamos que as pessoas fossem compreensivas com nossos recursos limitados. Foi um sucesso e o feedback das pessoas foi ótimo. Quem participou gostou da separação que fizemos na acomodação entre quem queria ficar acordado até tarde, e aproveitar a companhia uns dos outros, e aqueles que queriam dormir e falar baixo. Também gostaram que nós incluímos todas as diferentes dietas (vegetariana, pescetariana, etc) e do workshop que eu apresentei. O tema era “Como ser melhores aliados para pessoas trans* e não-binárias”. 25 pessoas se inscreveram para este retiro. Nosso objetivo era fazer um retiro divertido e educacional, e conectar a comunidade através de refeições, atividades recreativas, workshops, debates e, claro, com dança e música. Nós nos inspiramos nos lugares similares que gostaríamos de ter frequentado mas não podíamos porque eram no exterior. Sentimos que não éramos os únicos, então demos uma chance.

Você também mencionou que tem produzido conteúdo sobre educação sexual. Qual tem sido a recepção disso? Você acredita que a comunidade LGBTQIA+ tem pouca informação nesse âmbito?

Na verdade, eu devia esclarecer isso. Eu faço reviews de brinquedos sexuais e falo sobre sexualidade e sexo seguro, tudo ao mesmo tempo. Por exemplo, eu e uma colega gravamos um vídeo de DIY de dental dams* que explicava como usar dental dams e o porquê de as pessoas usarem. Também já fiz reviews de brinquedos sexuais e falei sobre os diferentes tipos de coisa que podem ou não dar prazer às pessoas. Eu tive feedback positivo pelos comentários no YouTube, mas muito mais feedback foi dado aos donos da Piooda, a loja de brinquedos sexuais que me permite fazer as reviews. Eles pessoalmente me disseram que muitos clientes entram na loja e mencionam meus vídeos, e como isso os deixou curiosos para testar os brinquedos que eu avaliei. É difícil fazer esse tipo de conteúdo, por conta das restrições do YouTube, mas ainda assim eu gosto de fazer esses vídeos.

*“barreira dental”, aquela folhinha de látex usada pelos dentistas. Também é utilizada para praticar sexo oral seguro.

Aprender mais sobre sua cultura foi um dos motivos pelo qual você se mudou para a Coreia. Mas pelo que você contou, você também tem trabalhado em mudar os comportamentos preconceituosos inseridos nessa cultura. Como você se sente sobre isso?

Eu nunca pensei nisso dessa forma. Às vezes penso sobre como os nativos coreanos me tratam, e me vejo fortemente como outsider** da cultura e sociedade. Como outsider, eu sentia que não devia tentar ou forçar uma mudança na sociedade e dizer que minha cultura é a correta e os outros estão errados. Mas quando se trata de direitos queer, estamos falando de direitos humanos. E quando você promove mudança pelos direitos humanos, não tem nada de errado nisso. Mas você está certa, mesmo como outsider, eu posso causar impacto mudando as perspectivas e ideias sobre pessoas queer pelos nativos coreanos cis e héteros. Eu apenas sinto que estou vivendo uma vida mais honesta e interpessoal me permitindo ser quem sou, e consigo manter um relacionamento autêntico com as pessoas, em que esconder minha sexualidade não é mais como esconder um segredo obscuro.

**alguém excluído

Já faz quase três anos desde que você se assumiu oficialmente como gender Queer no seu canal. Como as coisas mudaram desde então? Você acha que entende melhor a si?

Desde que me assumi publicamente no canal, me senti mais confiante e me desculpo menos por ser quem sou. Eu me imponho mais e corrijo as pessoas sobre os meus pronomes sem me sentir mal por isso. Eu sinto que também sou mais responsável para falar sobre pronomes e linguagem transfóbica/não-inclusiva por aqueles que não se assumiram, já que eu sou figura pública dentro da comunidade. Isso me permitiu mais motivação e paixão por organizar espaços de aprendizado e ensinar mais sobre trans* e pessoas não-binárias e linguagem inclusiva. Eu acho sim que estou me entendendo melhor.

A não-binariedade/queer são um assunto ainda pouco conhecido e discutido, tem pessoas que nem mesmo sabem que existem essas identidades de gênero. É difícil para você se apresentar/ para pessoas que você acaba de conhecer? Você costuma receber reações mais curiosas ou mais negativas? E voce conhece muitas pessoas coreanas que se identificam como não-binárias?

É mais difícil me assumir como genderqueer do que sobre minha orientação sexual, apesar de eu achar mais fácil me assumir para outros membros da comunidade queer, já que as chances de saberem o que é genderqueer/não-binário são maiores. Eu geralmente não recebo reações exageradamente negativas como alguém negar minha identidade de gênero, mas ignorarem minha identidade é comum, então esse é um lado que acho bem negativo. Quando cheguei na Coreia eu não conhecia ninguém [não-binário], mas agora surgem cada vez mais pessoas coreanas que se identificam como genderqueer.

Nós podemos sofrer preconceito mesmo dentro da própria comunidade LGBTQIA+ por conta da ignorância sobre alguns assuntos. Você sente que a comunidade te acolhe?

Sim e não. Quando eu cheguei na Coreia, não contei pra ninguém que me identificava como genderqueer. Eu não contei pra ninguém sobre meus pronomes. Eu só deixei todo mundo pensar que eu era uma lésbica cisgênero porque ninguém sabia o que genderqueer era há seis anos atrás. A comunidade aqui é bem conservadora.

Para nós não faz muito sentido que a comunidade LGBTQIA+ coreana seja tão cheia de conservadorismo, considerando que a cultua LGBTQIA+ significa progresso, e impedir que pessoas queer participem dela só perpetua as dificuldades que enfrentamos há anos em uma sociedade heterossexual. O que você pensa sobre isso?

Também não faz sentido pra mim, mas existe. Têm outras formas de ser conservador que influência a comunidade queer. Por exemplo, as ideias de gênero de pessoas LGBTIA+ podem ser bastante conservadoras, como esperar que homens e mulheres se comportem de determinada forma apesar de sua orientação sexual. Portanto, existe muito femme-shaming* aos homens e muita negatividade em relação a “mulheres masculinas”. Religião também pode ser um lugar de onde as ideias conservadoras vêm. Existem ideias como “claro, você pode nascer gay, mas Deus não comete erros e seu corpo é aquele que Deus lhe deu”. Essa concepção rejeita os corpos trans e as pessoas trans, que sentem que nasceram no corpo errado. Aos que pensam assim, eu acredito que a mudança deve vir deles mesmos. Da mesma forma como antes eles negaram sua própria sexualidade, chegou um novo tempo com educação e exposição o suficiente para eles pudessem aceitar a si mesmos por quem são. O mesmo precisa acontecer na forma como eles aceitam outros.

Você comentou sobre a provocação de vergonha em “homens afeminados” e o preconceito com mulheres “masculinizadas”. Você pode explicar um pouco sobre isso para nós?

Eu acredito que ainda exista homofobia internalizada e/ou o medo de ser descoberto ainda é tão forte que qualquer comportamento desse tipo é fortemente evitado ou indesejado. Por exemplo, “mulheres masculinas” são vistas como sendo “gay/lésbica demais”, então mulheres “femme” ou mulheres que “passam por hétero” as evitam ou não procuram uma parceira assim porque acreditam que serão forçadas a se assumir por associação com mulheres masculinas. “Homens afeminados” também sofrem esse tipo de preconceito, só que ao contrário. E eu não estou me referindo a preferência pessoal, porque este é outro tópico completamente diferente. 

No seu canal você constantemente fala sobre assuntos relacionados a comunidade LGBTQIA+. Este era um objetivo desde o momento em que você decidiu se aventurar no YouTube? O que te inspira a fazer esse tipo de conteúdo?

Meu objetivo era mostrar para as pessoas que gente como eu existia. Que não só pessoas LGBTQIA+ existiam, mas gente asiática e queer existe. Eu queria mostrar para as pessoas que gente queer também existe na Coreia. Eu queria mostrar ao mundo que nossas vozes e nossas histórias importam tanto quanto as das outras pessoas na comunidade LGBTQIA+ e quanto outras pessoas na comunidade asiática-americana. A falta de visibilidade e representação me inspira a todo o tempo a fazer esse tipo de conteúdo. 

Considerando o seu tipo de conteúdo, você pode ajudar muitas pessoas que podem estar passando por situações difíceis. Como você se sente sobre estar permitindo que essas pessoas se sintam seguras e reconfortadas através de seus vídeos? Você teve algum parecido no seu processo de auto-descoberta?

É uma honra criar espaço, mesmo que virtual, onde pessoas possam se sentir validadas e seguras pelo meu conteúdo. E eu quero continuar a fazer esse espaço cada vez maior e mais influente. Eu não tive isso enquanto crescia. Existia uma falta de visibilidade e representação de pessoas como eu, e eu lutei para me sentir normal por um tempo muito longo. Sofri com homofobia internalizada e autodepreciação por ter crescido num cenário católico conservador coreano em Orange County, California.

A Coreia tem ganhado o mundo e se tornado cada dia mais popular graças a cultura pop do país. Mas esse cenário de cultura pop inclui pouca ou nenhuma representação LGBTQIA+; no K-Pop temos dois artistas assumidos e com pouca visibilidade dentro do país, e os populares dramas dificilmente abordam temáticas relacionadas a comunidade. Como você acha que isso influencia o desenvolvimento da juventude LGBTQIA+ coreana? 

Eu acredito que a falta de representação LGBTQIA+ influencia uma progressão mais lenta de aceitação social do país como um todo. Apesar de não ter visibilidade e representação na grande mídia e nas grandes telas, plataformas como YouTube têm figuras LGBTQIA+ que eu acredito que a juventude coreana LGBTQIA+ pode encontrar, se quiser.

A Coreia é conhecida por seu conservadorismo. Você acredita que, assim como vem acontecendo no resto do mundo, as novas gerações estão se abrindo mais para entender a diversidade e assuntos relacionados a minorias sociais?

Sim, eu acredito que há progresso na aceitação da diversidade e mais conscientização sobre assuntos relacionados a minorias sociais. Existe mais informação por aí e há mais pressão pela igualdade.

O Brasil tem uma das maiores taxas de morte LGBTQIA+ no mundo, o que acaba trazendo uma frequente sensação de medo para a comunidade. Como é esse cenário na Coreia?

Eu acredito que na Coreia não tenha tantos crimes de ódio contra pessoas LGBTQIA+ especificamente porque identidades LGBTQIA+ ainda não são comumente conhecidas ou vistas para que as pessoas possam reconhecer um indivíduo específico por sua orientação sexual ou identidade de gênero.

Escutamos falar que a comunidade LGBTQIA+ coreana é muito fechada. Como ela funciona e qual é a sua parte favorita dela?

Uma grande parte da comunidade não se assumiu. Isso significa que muitos não se assumiram para seus amigos e família e não têm planos de fazer isso. Também significa que muitos espaços e eventos são no boca a boca, mesmo que exista cada vez mais eventos e espaços visíveis nas redes sociais. Boates e bares para pessoas queer AFAB (feminino de nascença) não podem ser encontrados nos mapas. Você precisa de alguém que já esteve lá para te mostrar ou dizer onde estão. Minha parte favorita sobre a comunidade aqui (especificamente a comunidade queer de pessoas expatriadas/estrangeiras) é que nós temos uma ligação próxima e apoiamos uns aos outros.

O que te dá esperança de um futuro com maior aceitação e menos preconceito na Coreia?

Eu acredito que, com o crescimento da visibilidade de pessoas queer ganhando espaço, a Coreia será mais receptiva no futuro.

Eu sei que atualmente a Amazônia estão pegando fogo e que há muita tensão política no país. Eu espero que os inscritos brasileiros estejam seguros e continuem firmes durante esses tempos. E para o resto do mundo, espero que se puderem, por favor ajudem a salvar as reservas. E para a comunidade internacional LGBTQIA+, espero que minha história e experiência possa ajudar a qualquer um que esteja precisando de ajuda, seja inspiração, motivação ou conselhos em sua própria jornada e existência queer.

– Hayden Royalty


Agradecemos a disponibilidade de Hayden, pela entrevista e todo o
esforço que tem dedicado a comunidade LGBTQIA+.

Entrevista por Bea e Tradução por Lýssa| Equipe de redação da K4US
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