AVISO DE GATILHO! O conteúdo a seguir contém temas que envolvem violência sexual, psicológica e física, além de outros crimes e assuntos delicados que podem engatilhar algumas pessoas. Se você for sensível a qualquer tema exposto aqui, tá tudo bem sair da página e procurar outra coisa para ler, ok? Preserve sempre seu bem-estar e tenho certeza que a gente se encontra de novo em outro texto! 


“Há tantas coisas nojentas. Se entrarmos em detalhes, vai ficar bem nojento”.

Vítima anônima, “Em Nome da Fé”, episódio 1.

Essa colocação me marcou muito. 

Enquanto assistia “Em Nome da Fé”, durante todos os 8 episódios, essa frase piscava na minha cabeça. Acho que nada define melhor o que foi o esquema montado por Jung Myeong Seok, Kim Ki Soon, Park Soon Ja e Lee Jae Rock. 

Essas pessoas foram as mentes por trás da criação de grandes organizações religiosas na Coreia do Sul e pregavam uma religião única: a que eles mesmos conceberam. E, em um surto megalomaníaco, os quatro eram os protagonistas, cada um discursando ser o próprio Messias reencarnado na Terra e responsável pela salvação da humanidade.  

Com muita capacidade de manipulação e chantagem, esses líderes conquistaram um grande número de fieis entre 1980 e 1990, mas a religião foi, na realidade, um meio para justificar crimes de abuso sexual, desvio de dinheiro e assassinato. 

Pode parecer absurdo que esse tipo de discurso consiga atrair pessoas, mas é importante lembrar que, nessa época, a Coreia do Sul vivia um período conturbado. Em meio à crise financeira e uma ditadura militar de anos, é fácil entender porquê a população se voltou para a única coisa que lhes dava esperança naquele momento: a fé. 

Essa fórmula funcionou tão bem que até hoje essas organizações estão ativas, com membros leais aos seus líderes, investindo tempo e dinheiro na defesa deles. Ou, em casos igualmente chocantes, há fiéis que alegam não ter ideia que estavam seguindo uma falsa religião envolvida em crimes. 

Esse é o cenário de “Em Nome da Fé”, uma minissérie documental da Netflix sobre 4 seitas religiosas que impactaram a vida de sul coreanos e estrangeiros. A história não é fácil e não tem um final exatamente feliz, pois envolve crimes graves e muitos de seus culpados, supostamente, estão livres. Inclusive, é possível, até, que comandem empresas dentro da indústria de entretenimento e do próprio K-Pop.

Contudo, é algo que precisa ser exposto e foi com isso em mente que o produtor Cho Sung Hyun decidiu seguir em frente com esse projeto. Além disso, em coletiva de imprensa para o lançamento do documentário, Cho Sung Hyun confessou que outro motivo para a criação de “Em Nome da Fé” foi o fato de que algumas vítimas eram familiares e amigos próximos seus. 

Mais uma vez, prossiga com cuidado. A minissérie não poupou detalhes explícitos, incluindo gravações originais em vídeo e áudio, além de textos dos depoimentos de vítimas e o relato de algumas delas durante os episódios. 


Jung Myeong Seok – Jesus Morning Star

em nome da fé

O primeiro episódio de Em Nome da Fé retrata a vida e os crimes de Jung Myeong Seok, fundador da Jesus Morning Star (JMS), uma seita que tentou se enquadrar como uma “nova religião” em 1980. Como principal pilar da JMS estava a figura de Jung Myeong Seok que se proclamava o “messias encarnado”. Utilizando-se desse discurso, Jung procurou atrair pessoas mais jovens para sua igreja, especialmente mulheres e estudantes de universidades prestigiadas da Coreia do Sul. 

Às mulheres que foram suas vítimas, Jung Myeong Seok justificava os estupros afirmando que esse era o único meio de salvação de suas almas. Em seguida, ele obrigava as jovens a continuarem ao seu lado por meio do abuso psicológico. Segundo o líder da JMS, automaticamente após a violência sexual, as mulheres se tornavam esposas dele e, como tal, jamais poderiam sair da relação ou iriam para o inferno. 

O número de vítimas crescia assustadoramente, pois elas eram manipuladas a convencer novas mulheres a se juntarem à seita. Em 1991, contudo, a primeira denúncia surgiu: uma das seguidoras decidiu deixar a organização e relatou os horrores que viveu na JMS, que incluíam, inclusive, perseguições e sequestro. 

A partir desse episódio, choveram denúncias da mesma natureza. Jung Myeong Seok, porém, conseguiu fugir da Coreia do Sul e, pior, estender o domínio da JMS para outros países, indo de Hong Kong à Austrália. Infelizmente, em todos os lugares que pisou, o líder deixou uma série de vítimas. 

Seu reinado de crimes e manipulação teria uma pausa em 2007, quando foi finalmente preso. Ainda assim, a prisão não o impediu de continuar a lavagem cerebral que fazia e, mais chocante, sua sentença foi de apenas 10 anos. Então, mesmo com todos os seus crimes expostos perante a Lei e a sociedade, em 2018 Jung Myeong Seok era um homem livre, restrito apenas por uma tornozeleira eletrônica, mas ainda aclamado por seus seguidores. 

Em 2022, Jung Myeong Seok foi preso novamente sob nova acusação de estupro por parte de mais vítimas. Atualmente, ele segue aguardando julgamento.

Park Soon Ja – Five Oceans 

em nome da fé

A segunda história trazida pelo documentário acompanha a líder Park Soon Ja, sua empresa Five Oceans e o caso do suicídio coletivo de seus seguidores. 

Para os coreanos, Park Soon Ja era uma mulher gentil que administrava um negócio de sucesso, a Five Oceans, e se dedicava fervorosamente à filantropia. Sua empresa pertencia ao ramo do artesanato e seus empregados eram, em sua maioria, artesãos que passavam por dificuldades. Desse modo, faz sentido que a CEO fosse endeusada a ponto de ser considerada uma líder espiritual. 

Seu aparente sucesso e bom serviço à comunidade lhe rendeu uma posição de destaque e influência social que facilitou a aquisição de empréstimos sob pretexto de destinar o dinheiro a órfãos que a empresa ajudava. A realidade, no entanto, é que a Five Oceans era uma empresa de fachada e as crianças eram filhas de credores. 

Sem conseguir lidar com os juros e as cobranças, em 1987, Park Soon Ja e seus seguidores decidiram fugir, escondendo-se na fábrica da Five Oceans, onde, posteriormente, foram encontrados mortos. Inicialmente, as autoridades sul-coreanas consideraram o caso como um suicídio coletivo. Contudo, até hoje não se sabe ao certo se foi suicídio ou homicídio. 

O que se soube com certeza, após a morte de Park Soon Ja, é que a CEO e sua seita estavam subordinadas à Igreja Evangélica Batista da Coreia, em especial ao líder religioso Yoo Byung Eun que também era presidente da Samwoo Trading, atual Semo Corp., uma holding ligada a diversos setores da indústria, principalmente transporte marítimo. 

Yoo Byung Eun foi condenado a 4 anos de prisão pelo crime de “fraude habitual sob a máscara da religião”, mas as autoridades nunca conseguiram encontrar conexão entre ele e o suposto suicídio em 1987. Nenhum depoimento pode ser colhido posteriormente, pois após o desastre da Balsa Sewol (empresa de Yoo Byung Eun), ele morreu em 2014 numa tentativa de fuga de acusações de crimes relacionados a sua gestão na empresa. 

Kim Ki Soon – Baby Garden

O terceiro caso trazido pela minissérie é de Kim Ki Soon, líder da Baby Garden que surgiu na década de 1970. Durante os cultos e em diversas ocasiões, Kim Ki Soon se denominava Agaya, quando dizia ter incorporado uma criança de 3 anos. 

A Baby Garden era uma seita restrita e os fiéis viviam em condições subumanas em uma propriedade conhecida como o Jardim de Bebês e o Paraíso na Terra. Famílias eram separadas e os seguidores eram obrigados a dar grandes quantias de dinheiro a Kim Ki Soon.  Aqueles que não o faziam, trabalhavam sem descanso na propriedade. 

Ex-seguidores que aceitaram participar do documentário relataram que Kim Ki Soon manipulava seus seguidores e os fazia acreditar que pessoas poderiam ser possuídas e quando isso acontecia, a única salvação seria o espancamento. Além disso, a líder também foi acusada de, pelo menos, 3 assassinatos. 

Como citei no início, essas histórias não têm exatamente um final feliz, e o caso da Baby Garden segue o padrão. Sua líder nunca foi condenada por nenhum dos crimes de assassinato, mas de evasão fiscal. Em sua condenação, ela foi obrigada a pagar uma multa, algo que fez facilmente, pois além de contar com o dinheiro recebido ilegalmente de fiéis, ela já era proprietária da Synnara Record, uma das maiores distribuidoras de discos na Coreia do Sul. 

Muitos especulam que o sucesso da distribuidora foi consequência de um possível emprego de fiéis da seita que trabalharam de graça. Além disso, para aumentar o meu espanto, o atual CEO da distribuidora era funcionário da Baby Garden. Por esse motivo, há quem acredite que Kim Ki Soon ainda presida a Synnara Record, mas isso nunca foi comprovado até o momento. 

Lee Jae Rock – Manmin Central Church

Por fim, o documentário encerra com a seita de Lee Jae Rock, a Igreja Central Manmin. Segundo o líder, seu propósito espiritual teve início após supostamente encontrar a cura, através da oração, para algumas doenças e dores que sofria. 

Em 1982, Lee Jae Rock funda sua igreja e começa a pregar com a certeza de que havia sido escolhido pelo Senhor, alcançando fama e status, enquanto gastava o dinheiro de fiéis em jogos de azar e organizava eventos luxuosos. Sua popularidade foi capaz de colocá-lo para pregar na Madison Square Garden, nos Estados Unidos. 

Em termos ideológicos, Lee Jae Rock dividiu seus fiéis em castas. Aqueles que doavam mais, ganhavam mais benefícios. Além disso, a manipulação incluía a distribuição de papéis para os seguidores indicando sua porcentagem de fé e seu nível espiritual. Isso criava rivalidade entre os membros e os fazia doar cada vez mais. 

Suas ações criminosas foram ficando cada vez mais evidentes, ao ponto de chegarem até a MBC. Mais especificamente, o programa “PD Note”, que investigava casos controversos. Em um de seus episódios, Lee Jae Rock foi investigado por fraude. A reação da igreja foi instantânea. Eles invadiram o edifício da emissora e tiraram o programa do ar. 

Em 2018, após a revelações do movimento #MeToo, três fiéis denunciaram o líder da Manmin, alegando que foram convocadas por ele para comparecer em sua casa e abusadas sexualmente. Posteriormente, mais denúncias semelhantes surgiram. Ele foi preso e condenado a 15 anos e durante a leitura do veredito, permaneceu de olhos fechados, sem expressar qualquer reação. Atualmente, ele continua detido no Centro de Detenção de Daegu. 


Esse foi, de longe, o texto mais difícil que fiz aqui na K4US. Cada história me espantou, me deixou indignada. É triste saber que um ser humano pode ser capaz de fazer coisas hediondas como essas. É triste também que esses casos tenham acontecido em um país tão querido por nós, né? 

Infelizmente, às vezes precisamos de um reality check para entender que nem tudo são flores na vida, e construir uma visão um pouco mais crítica da realidade, especialmente sobre as coisas que gostamos muito. 

Texto por Fran | Revisão por Ana Carol | Equipe de Redação da K4US
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