A Academia Brasileira de Letras (ABL) incluiu oficialmente a palavra “dorama” no vocabulário da língua portuguesa. A confirmação aconteceu pelas redes sociais da instituição e desagradou a Associação Brasileira dos Coreanos (ABC), pesquisadores de linguística e cultura sul-coreana e fãs da cultura asiática no geral. 

Segundo a definição da ABL, “dorama” significa “obra audiovisual de ficção em formato de série, produzida no leste e sudeste da Ásia, de gêneros e temas diversos, em geral com elenco local e no idioma do país de origem”. 

Para além da definição, a publicação complementa escrevendo que “os doramas foram criados no Japão na década de 1950 e se expandiram para outros países asiáticos, adquirindo características e marcas culturais próprias de cada território. Para identificar o país de origem, também são usadas denominações específicas, como, por exemplo, os estrangeirismos da língua inglesa J-drama para os doramas japoneses, K-drama para os coreanos, C-drama para os chineses” e é exatamente por ignorar essas variações que a ação da ABL não foi bem interpretada por estudiosos e pela Associação Brasileira dos Coreanos (ABC). 

Em manifesto, a ABC se posicionou contra a oficialização dessa palavra em específico, comparando a medida com a prática de Orientalismo. Segundo Said (2007), o Orientalismo é uma construção Ocidental a respeito do que é o Oriente. Para o autor, esse processo é feito pela divisão do mundo em dois blocos: o Ocidente, considerado “civilizado”, e o Oriente, visto como “exótico”. 
Além disso, o Orientalismo está intimamente ligado à visão Colonialista do mundo, que coloca o homem branco e ocidental como o responsável por levar a civilização e o desenvolvimento para os orientais “bárbaros” e é considerada uma forma de xenofobia.

O Manifesto

Na última sexta-feira (27), a Associação Brasileira dos Coreanos emitiu um manifesto se posicionando a respeito da situação. No documento, a ABC interpreta como preconceituosa a decisão da Academia Brasileira de Letras, por entender que generaliza produções do leste-asiático. 

“O uso no Brasil do termo ‘dorama’, em japonês, generaliza e apaga indústrias midiáticas asiáticas. Esse apagamento fortalece estereótipos e reforça, assim, o orientalismo. O drama de TV é um formato televisivo realizado em diferentes indústrias da mídia no Leste e Sudeste Asiáticos. Chamar um drama sul-coreano, ou K-drama, de ‘dorama’ é mais uma forma de estereotipar um consumo, além de ativar estruturas históricas de raízes imperialistas. ‘Dorama’ é um neologismo que ainda pode ser combatido, até porque todo este debate não é um preciosismo linguístico, mas sim uma questão séria de apagamento midiático de diversas perspectivas culturais e de profunda carga imperialista de um passado extremamente recente. Vamos respeitar as culturas, especialmente quando somos tão fãs de suas produções”, escreve a Dra. Daniela Mazur, integrante do MidiÁsia, um grupo de pesquisa da Universidade Federal Fluminense (UFF), e signatária do manifesto da ABC. 

O documento contou, também, com a observação da Dra. Yun Jung Im, professora e coordenadora do curso de letras – coreano, da Universidade de São Paulo (USP). De acordo com Im, “ ’Dorama’ é uma palavra niponisada de um termo em inglês, transcrita dessa maneira por força das características fonéticas do silabário japonês, o que não é o caso da escrita coreana, a qual permite transcrevê-la como ‘drama’ (…) Ou seja, quando chamamos os seriados coreanos de K-drama, estamos usando o termo em inglês já transcrito para o coreano (…) Por isso, generalizar as produções do sudeste asiático como ‘doramas’ seria como chamar todos os asiáticos de ‘japa’, contrariando a tendência atual de dar voz às minorias”.

A resposta da ABL

A assessoria de comunicação da Academia Brasileira de Letras foi procurada para expor o seu lado, mas, até a data de publicação deste artigo, a K4US não recebeu resposta. Contudo, no portal da ABL é possível encontrar a entrevista que Ricardo Cavaliere, filólogo e linguista brasileiro, cedeu ao jornal Estado de S. Paulo em nome da Academia. 

Em resumo, Cavaliere explica que “Dorama” foi adotada segundo a lógica do “empréstimo linguístico”, em que uma palavra, quando incorporada por outra língua, ganha vida própria e se distancia de seu significado original, como aconteceu com “shopping”, que em português se refere à estabelecimentos que, no inglês, são denominados de “mall”. A palavra passa, assim, a servir um contexto histórico-cultural e não apenas o seu significado estrito. 

“O registro feito em dicionários e vocabulários é posterior ao uso que os falantes fazem da língua no processo de comunicação. A língua é um organismo vivo em constante transformação. Os dicionários e vocabulários, por natureza, se atêm à realidade do idioma em ato”, escreve o filólogo. 

O que tirar de tudo isso

A fluidez da língua é um fato e por isso um idioma está em constante transformação. No entanto, se esse movimento é consequência do grande leque de nuances culturais e sociais dentro do mundo que vivemos atualmente, por quê existe a necessidade de diminuir uma (ou várias) cultura dentro de uma caixinha que não lhe cabe? 

Certamente que a palavra pode tomar proporções próprias, extrapolar os limites teóricos e criar seu próprio caminho com base na prática cotidiana de sua utilização. No entanto, enquanto seres pensantes em pleno século XXI, podemos questionar isso, certo? Especialmente vivendo em um tempo onde o debate sobre o reconhecimento do individual é cada vez mais presente e necessário. É preciso pensar para além das justificativas prontas que são dadas sempre que uma palavra é, pertinentemente, questionada. Há anos existe alternativa para o uso de “Dorama”, respeitando a individualidade de cada país. Por que o Brasil não bate nessa tecla, então, ao invés de se ater ao mínimo? 

Aqui encontramos, mais uma vez, a oportunidade de desconstruir preconceitos e romper com estereótipos e, penso eu, nunca é demais aproveitar esses momentos.