Um drama de ficção que se entrelaça com a realidade que assolou a Península Coreana entre 1910-1945. O horror vivido nas mãos da Ditadura Japonesa sob o país e em como a trama traz analogias e metáforas coerentes, e até mesmo esquecidas, do que o povo japonês fez ao longo de sua história. A Criatura de Gyeongseong e sua relação com a Ocupação Japonesa na Coreia não esconde e nem mede palavras e cenas para descrever e mostrar o tamanho horror que a ganância e a sede pelo poder podem levar o ser humano a cometer atos terríveis e impensados.

Devido a isso, vale se fazer um destrinchamento de como a ocupação ocorreu e quais atos atrozes ocorreram ao longo dela até o seu fim na primavera de 1945, que é o momento o qual o drama se passa.

Uma curiosidade também importante: Gyeongseong era o nome que os japoneses deram a Seul na época de sua invasão.

Foto da cena do final do K-drama, onde Gyeongseong se vê livre da Ocupação Japonesa

O início do pesadelo

Em meados do fim do século XIX (19), a China era um império que estava constantemente sendo atacado pela Europa e seus interesses de mercado. Nessa mesma época, o Japão surgiu em vários âmbitos da sociedade, tornando-se a única nação mais moderna do Leste Asiático.

Falo mais sobre as questões do povo chinês e sua história em: “China e Hong Kong, a problemática entre potências”.

No início da governança do imperador Meiji (1868-1912), o Japão promove reformas econômicas, que consequentemente, dão um gás na indústria japonesa e também faz com que haja uma implementação da tecnologia ocidental com a nacional. A moeda  円 (en/iene) é criada, o ensino primário se tornou obrigatório e as universidades são feitas e no meio de tanta evolução, infelizmente, também foi acompanhada de uma veloz militarização no intuito de fortalecer o poder imperial japonês. 

No contexto geográfico, a Coreia estava logo ali. Por ser fixada tão próxima da China e da Europa, ela era vista pelos japoneses e chineses como um meio de passagem claro para expansão de território e consumo econômico. E a Coreia por isso, se tornou um país ameaçado pelos impérios expansionistas. 

As Guerras Sino-Japonesas, 2ª Guerra Mundial e as mulheres exploradas pelos japoneses

O século XIX foi arrebatado por brigas pelo domínio chinês e japonês da península e a população ficou dividida em 3 lados: os conservadores que queriam continuar com a tradição de manter um laço com a China.

Reformistas, que achavam que tendo uma relação com o Japão e o Ocidente seria algo que impulsionaria uma evolução positiva no meio social e econômico da Coreia. E, por último, o terceiro grupo que não achava nenhuma das ideias minimamente boas.

Porém, o fato da monarquia chinesa estar enfraquecida na época fez os japoneses apressarem seus movimentos e aproveitarem a chance de colocar sua influência na Coreia, e devido a tal ação, a 1ª Guerra Sino-Japonesa (1894-1895) ocorreu e teve a vitória do Japão sobre a China. Resultando o fim do domínio chinês no país e a invasão do Japão.

No drama, Chae Ok (Han So Hee) cita bastante a Manchúria para Tae San (Park Seo Joon) no início da trama e isso claramente não é por acaso. Entre 1904-1905, o Japão também entrou em conflito com a Rússia. A briga era a disputa do domínio coreano — mais uma vez — e a Manchúria que se encontrava no nordeste da China. O conflito resultou em outra vitória para o Japão, o que marcou também a 1ª vitória de um país oriental sobre um europeu, e esse resultado transformou a Coreia em um protetorado.

E então, em 1910 o Japão transformou a Coreia em uma colônia japonesa e isso durou até o fim da Segunda Guerra Mundial. Mas além da Coreia, o Japão ainda avançava sobre a China e suas tentativas falhas de tentar se proteger do avanço japonês na região. 

A “unificação” forçada se realizou quando Chiang Kai-Shek (1887-1975) e seu exército nacionalista venceu o governo da Manchúria e essa vitória fez surgir o movimento comunista chinês que era totalmente contra o governo de Kai-Shek e realizava constantemente revoltas contra ele. E o Japão, de que burro não tinha nada, usava essas revoltas para alimentar o sentimento imperialista no país e nos estados protetorados.

Um país protetorado se baseia numa relação jurídica que é decretada entre dois Estados em que um deles (o Estado protetor) assume o compromisso de defender o outro (o Estado protegido) contra qualquer violação de direito internacional.

Em 1937 ocorreu a Segunda Guerra Sino-Japonesa, que dessa vez envolveu a Coreia diretamente no embate e fez uma cicatriz profunda que até hoje nunca foi esquecida e cicatrizada: as mulheres de conforto.

Mulheres coreanas, chinesas e de outros países que foram invadidos pelo império japonês, eram raptadas e tiradas de seus lares, e até mesmo países, para serem usadas como escravas sexuais do Exército Japonês. As tropas japonesas estupraram e assassinaram mais de centenas de milhares de chinesas na Tomada de Nanquim, a antiga capital da China.

“O imperador japonês viesse, se ajoelhasse na nossa frente e pedisse perdão sinceramente. […] Me pergunto por que nos chamaram assim “mulheres de conforto”. Não fomos por vontade própria, fomos sequestradas e nos obrigavam a ter relações com muitos homens todos os dias”.

Ok Seon, 88 anos para a BBC sobre o que sofreu na época da Segunda Guerra Mundial.

“Mulheres de conforto” é um eufemismo grotesco que era usado normalmente para descrever o terror que essas mulheres passaram na mão dos japoneses. Já foi constatado também que até mesmo crianças e meninos também foram encontrados nas vítimas de estupro do governo japonês. 

Entretanto, é de extrema importância ressaltar que a escravidão sexual não terminou na Segunda Guerra Mundial e perpetuou-se também durante a Guerra Fria pelos Estados Unidos. Haviam “Unidades especiais para mulheres de conforto” para soldados sul-coreanos e “Estações de Conforto” para tropas das Nações Unidas que eram lideradas pelos Estados Unidos em solo coreano. 

Muitas mulheres eram postas em volta de “cidades-acampamentos” que foram construídas justamente em volta de bases militares estadunidenses para os soldados terem fácil acesso à exploração das mulheres. E isso tudo era feito com o consentimento do governo sul-coreano para incitar mais apoio dos soldados estadunidenses na Guerra Fria contra a Coreia do Norte e a Rússia.

1º vídeo registrado das mulheres de conforto que foram escravizadas pelo exército japonês na 2ª Guerra Mundial. O vídeo contém apenas 18 segundos.

“Era como um matadouro, não para animais, mas para humanos. Ali se faziam coisas horríveis.”

Ok Seon, 88 anos para a BBC sobre o que sofreu na época da Segunda Guerra Mundial.

Unidade 731 e o fim da Segunda Guerra Mundial, mas não do pesadelo coreano

Um fato que foi usado em Criatura de Gyeongseong que é baseado numa brutalidade infelizmente real foi a Unidade 731, que foi criada pelos japoneses com o objetivo de fazer testes biológicos em prisioneiros chineses. 

O caso da Unidade 731 não foi um caso certamente isolado, e a representação dela pode ser facilmente atrelada ao que faziam no drama no hospital Ongseong onde os coreanos eram presos, entre eles crianças, mulheres e homens, e eram usados para experimentos cruéis e descritos como desumanos na narrativa em prol de um avanço científico dos Najin por parte dos militares japoneses.

Os Najin são como são chamamos os parasitas que os japoneses acabam entreando em contato quando um deles vem do oceano e uma garota é infectada por ele e destrói toda sua aldeia. Acho que aqui também é possível perceber o Najin como o ocidente – em especial os Estados Unidos e a Rússia – querendo pôr suas mãos na Ásia e “infectando-os” com suas intrigas e guerras ideológicas. Porém, os japoneses mesmo vendo o estrago que o parasita faz, continuam pesquisas em cima deles, os testando em humanos.

Na Unidade 731, acontecia a mesma coisa: chineses eram capturados e assassinados sendo submetidos a vivissecção, que é o ato de dissecar um ser vivo para realizar estudos anátomo-fisiológicos sem anestésicos. E outras vítimas eram também amarradas a estacas de madeira para que bombas de antraz fossem testadas ao seu redor. Além de mulheres que foram infectadas propositalmente por sífilis em laboratórios e civis que foram raptados para serem injetados com vírus fatais em prol de “aprendizado pedagógico”.

Gostaria também de ressaltar que acho sem nexo o uso da palavra “desumano” nesses contextos perversos da humanidade. Pois as pessoas não deixaram de fato de serem humanas quando fizeram tais ações, parece que tiramos o peso do quão ruim o ser humano pode ser quando os seus interesses e ignorância são postos em jogo. Gosto de afirmar que são ações cem por cento humanas alimentadas por um sistema capitalista sujo e sanguinário.

Como mostrado na trama, tudo isso teve um fim na primavera de 1945, mais precisamente em 2 de setembro de 1945 (tendo oficialmente o abandono da reivindicação japonesa em 28 de abril de 1952).

Com a entrada do Japão no Eixo, os combates se estenderam até 1945 quando o Japão saiu completamente devastado da 2ª Guerra Mundial devido aos bombardeios atômicos considerados os mais perversos do mundo em Hiroshima e Nagasaki, e anterior a isso também teve um ataque estadunidense à Tóquio, que sacrificou cerca de 200 mil civis.

E mesmo com tudo isso acontecendo, o fim da Segunda Guerra Mundial não marcou o fim da violência, dos massacres e da ruindade do ser humano. Pois em 12 de março de 1947 se começa a Guerra Fria e a Península Coreana ao invés de ter paz é dividida em duas regiões: a Coreia do Sul que sofre influência dos Estados Unidos e do capitalismo e a Coreia do Norte que se alia aos soviéticos e defende o socialismo.

Separação essa que perdura até os dias atuais.

A história retratada em A Criatura de Gyeongseong, tanto a fictícia quanto a baseada em fatos reais, nos mostra a busca incessante pela identidade, independência e o afastamento da exploração, opressão e discriminação dos governos soberanos que se impõem sobre uma sociedade que apenas quer ser livre e viver. 

A representação sobre o passado é sempre válida para trazer o questionamento de quem somos, como chegamos aonde chegamos e pelo que ainda precisamos lutar nos dias atuais que parecem querer retornar as mazelas de um tempo retrógrado, arcaico e nefasto.

Além disso, os personagens lidam com vivências singulares, que questionam também quem eles são, onde eles se encontram e o que a sociedade espera deles dentro de seus padrões e pressões externas que se manifestam politicamente, economicamente e socialmente.

É um drama que com certeza pode ser considerado uma das melhores produções coreanas, ficando ao lado talvez de D.P. Dog Day, Louvor À Morte, Mr. Sunshine e Extracurricular, pois convida o expectador a analisar situações que são esquecidas e subjugadas pela população atual, que destaca a importância de nos atentarmos aos governos de agora para não repetir os mesmos erros do passado e, mesmo com medo da repressão, entender que sem alguém que acredite na mudança nós não caminharemos nunca para lugar algum.

Cena de A Criatura de Gyeongseong onde Tae San diz: “Vocês nos forçam a trair uns aos outros na esperança de quebrar nosso espírito e apagar quem nós somos.”

Referências Bibliográficas

https://epoca.globo.com/mundo/noticia/2017/09/como-historia-explica-tensoes-da-coreia-do-norte-com-seus-vizinhos.html#:~:text=O%20Jap%C3%A3o%20ocupou%20a%20Coreia,japonesa%20foi%20cruel%20ao%20extremo.
https://www.abrilabril.pt/internacional/crimes-dos-nazis-fascistas-e-militaristas-japoneses-na-2a-guerra-mundial