Natural de Busan, Coreia do Sul, Jungle, ativista trans coreana, é extremamente dinâmica. Militante, modelo, performer, vocalista… Ela se joga em várias frentes e se posiciona sem medo ou vergonha, com a esperança de ser alguém em quem outros membros da comunidade LGBTQIAPN+ possam se apoiar. A militância, contudo, veio em meio à dor: quando começou a terapia hormonal enfrentou a dura realidade do conservadorismo sul-coreano. Sem o apoio da família, Jungle precisou ser resiliente. Viajou para a Europa, teve contato com outras culturas e costumes, voltou para a Coreia e colocou em prática o dinamismo de sua personalidade.
Em 2022, Jungle iniciou uma nova etapa na terapia hormonal. De companhia veio um novo olhar sobre si mesma, a autoaceitação. E, a partir dali, a ativista começou a se abrir cada vez mais, compartilhando com a comunidade toda a sua jornada. Desse movimento nasceu a Transparent, um evento para reunir pessoas trans na Coreia do Sul. “Assim como o nome diz, eu quero ser transparente”, ela comenta em entrevista para a revista Vogue.
Neste mês do Orgulho, a K4US teve a oportunidade de entrevistar essa artista incrível, conhecer um pouco mais do trabalho super importante que ela faz lá na Coreia do Sul (e que reflete no mundo todo, né?) e, de quebra, ganhar um recadinho especial para nós, brasileiros!
Confira aqui embaixo a entrevista completa.
1. Temos muitos leitores LGBTQIAPN+ que já te conhecem, mas não entendem muito bem a proposta da Transparent. Pode explicar melhor?
“Transparent” é um evento comunitário onde pessoas trans se encontram com outras pessoas trans para construir relacionamentos e a comunidade juntas. Quando comecei minha terapia hormonal em 2021, não tinha ninguém com quem conversar ou encontrar o apoio que precisava. As informações na internet eram acessíveis, mas eu queria conhecer alguém real passando pela mesma experiência e descobrir como é a transição na Coreia. Havia muitas coisas que eu só podia supor e tive que explorar por conta própria.
Não estamos tentando ser outra pessoa, mas sim ser quem somos sem enganos ou esconderijos.
Jungle
Por causa disso, tive muitas preocupações sobre se estava fazendo as coisas certas. Eu queria, pelo menos, conversar sobre todas as mudanças no corpo e na mente com a terapia hormonal. Então, após um ano de terapia hormonal, lancei o Transparent no Dia da Visibilidade Trans de 2022. Eu simplesmente queria me conectar com as pessoas para que pudéssemos nos apoiar e estar presentes uns para os outros. O nome ‘Transparent‘ veio da ideia de que queremos viver ‘transparente’, como somos. Não estamos tentando ser outra pessoa, mas sim ser quem somos sem enganos ou esconderijos. Além disso, muitas vezes, nós, pessoas trans, acabamos nos cuidando como se fôssemos nossos próprios pais, e eu queria que tivéssemos a ideia de sermos uma espécie de pais uns para os outros na comunidade trans.
2. Vai ter edição da Transparent agora no mês do Orgulho? Se sim, pode dar um spoiler do que vai rolar?
Nós temos uma nova Transparent para o dia 28 de Julho, no Kockiri Bar, em Itaewon. Estamos planejando celebrar 3 pessoas que estão completando o primeiro, segundo e terceiro ano de suas jornadas com terapia hormonal. Pessoalmente, não sinto a necessidade de seguir o calendário do Orgulho, pois há muitas coisas acontecendo no mês do orgulho. Queremos ser independentes e planejar nossa própria agenda.
3. Recentemente tivemos a celebração da Parada LGBTQIAPN+ em diversos países, inclusive, a do Brasil foi parar no Guinness Book, como a maior no mundo com 2,5 milhões de pessoas. Na capital da Coréia do Sul, milhares foram às ruas celebrar o orgulho mesmo com as autoridades e políticos conservadores contrários. Acredita que levará muitos anos para termos mais políticas voltadas à comunidade na Coreia do Sul? E qual a importância dessa celebração no país?
O K-pop pode ter levado as pessoas a acreditar que a Coreia do Sul é uma sociedade progressista, mas na verdade é ainda muito conservadora. Por isso, esses tipos de celebração são muito importantes para a cultura daqui. Seja orgulhoso, seja visível, seja conectado. Estamos nisso juntos e cada um de nós pode fazer a diferença na cultura daqui.
4. Sendo a quarta maior economia do mundo, a Coreia do Sul ainda não reconhece o casamento entre pessoas do mesmo sexo e peca em políticas públicas de proteção à comunidade. Como uma figura pública, referência e ativista trans, como enxerga a questão dos direitos da população LGBTQIAPN+ no seu país?
Não há muita consciência aqui sobre as questões trans. As pessoas não falam sobre isso e as pessoas trans são relativamente invisíveis na sociedade. Então nós precisamos nos fazer mais visíveis, falar e continuar a conversar sobre direitos trans, direitos das mulheres e direitos humanos. Ainda temos um longo caminho para percorrer aqui, mas estamos fazendo nosso melhor em nossa posição e acredito que eventualmente isso vai mudar. Tenho um grande respeito pelas pessoas que vieram antes de nós e nos ajudaram a chegar onde estamos. Acredito em um futuro melhor para a humanidade.
O K-pop pode ter levado as pessoas a acreditar que a Coreia do Sul é uma sociedade progressista, mas na verdade é ainda muito conservadora.
Jungle
5. Você viajou para diversos países a trabalho, o que lhe permitiu observar diferentes discursos e fases do movimento LGBTQIAPN+. Como essas diversas perspectivas influenciam seu trabalho, especialmente no projeto Transparent e na sua expressão artística? Quais reflexões você tem sobre o movimento dentro da comunidade sul-coreana, após observar essas diferentes visões, e há alguma perspectiva de esperança para um maior engajamento e abertura para debates sobre os direitos LGBTQIAPN+?
Vejo grandes diferenças dependendo da cultura com a qual estou trabalhando. No meu papel na Acne Studios, uma empresa europeia, nunca sinto nenhum julgamento relacionado a minha identidade trans. Mas trabalhando na sociedade sul-coreana, sempre sinto que isso afeta a forma com que as pessoas me percebem. Acredito que a maior diferença vem da ignorância (a maioria dos coreanos comuns nunca interagiu com uma pessoa trans como pessoa), então nós temos que ser visíveis, conhecer pessoas e remover o estigma negativo que existe.
6. Qual é a importância do movimento Transparent para você e como você acredita que ele beneficia as pessoas da comunidade LGBTQIAPN+? Em uma sociedade onde a dor e outras questões de saúde mental não podem ser expressas abertamente, como você comentou para o Seoul Community Radio, como seus projetos, em especial o Transparent, contribui para as pessoas envolvidas celebrarem suas belezas e criarem um espaço de aceitação e bem-estar?
Na Coreia, há uma tendência muito forte de celebrar pessoas trans que são particularmente binárias, mas espero que com a nossa comunidade Transparent nós estejamos criando um ambiente onde todos os tipos de beleza e aparência são aceitos e celebrados. Somos belos quando somos únicos uns para os outros.
7. A moda é uma forma de nos expressar e nos colocar no mundo, como sua trajetória na moda começou? Quais foram suas maiores referências nesse processo?
Eu sempre fui uma criança insegura e sentia que sempre era diferente (geralmente não de forma positiva). Havia um padrão rígido de beleza do qual eu me via fora, mas escolhi explorar a moda para me expressar. Moda é uma comunicação não verbal: você pode expressar quem você é e, se tiver sorte, encontrar grupos semelhantes.
Somos belos quando somos únicos uns para os outros.
Jungle
8. Trabalhando com marcas diversas, você sente que a moda tem se mostrado mais inclusiva ou sente que ainda precisa caminhar para isso?
A moda começou a prestar atenção na diversidade, mas isso não significa necessariamente que seja inclusiva. Vendem imagens de quem você gostaria de ser, mas sem realmente conhecer quem você é, isso não significa nada. Acredito que o mais importante é aprender sobre si mesmo quando se trata da jornada da moda.
9. Sobre as referências que tem quando pensa no Brasil, qual o tipo ou estilo de roupa que você encaixaria nas suas produções?
Cores vibrantes, diferentes tipos de corpo e uma sensação geral de fabulosidade vêm à mente quando penso no estilo brasileiro. As pessoas brasileiras parecem ser confiantes, expressivas e vibrantes; eu quero parecer sexy como os brasileiros.
10. Como é conciliar as diferentes áreas de atuação na sua rotina? Sabemos que você trabalha como modelo, performer, é ativista e ainda vocalista de uma banda.
Todos os projetos que estou fazendo são muito divertidos, então o processo é prazeroso. Exceto os prazos. Estou cercada por muitos amigos brilhantes que me apoiam, e isso realmente ajuda.
11. Com tantas áreas abarcadas na sua rotina, tem algum outro projeto ou sonho que gostaria de realizar?
Na verdade, sim, tem. Estou aos poucos voltando a atuar. Meu curta-metragem de estreia dirigido por Yoon Gyun Lee será lançado ainda este ano. Estou muito animada com isso.
12. A arte tem caminhado junto com você há muito tempo e sempre é uma forma de comunicação incrível com as pessoas. O que te inspira atualmente? Tem algum artista que você se espelha?
A música sempre me inspira. O que é diferente agora é que estou fazendo música com minha banda. Tenho aprendido com eles, tocando e gravando junto, e tem sido inspirador para mim. Então, admiro muito meus colegas de banda.
13. De todas as viagens que já fez performando sua arte e buscando novos gêneros artísticos, alguma cultura ou país te marcou mais?
Eu nasci e fui criada em Busan, na Coreia do Sul, e quando criança, antes da internet ser uma coisa, eu tinha acesso à cultura japonesa, já que Busan fica bem perto do Japão. Então, a cultura japonesa sempre foi uma influência central para mim. Por outro lado, a Inglaterra me ajudou a crescer em um contexto cultural completamente diferente, que expandiu meu ponto de vista sobre arte. Ambos são ilhas, então há algo em comum aí.
14. Sabemos que ainda há muitos desafios a serem enfrentados pela comunidade LGBTQIAPN+ em diferentes aspectos sociais. Você teria algum conselho para passar?
Crescer sempre envolve dor. Você é mais forte do que acredita. Como meu amigo/a/e mexicano/a/e costumava me dizer, a má notícia é que nada dura para sempre, mas a boa notícia também é que nada dura para sempre. Tudo vai ficar bem.
15. Poderia deixar uma mensagem para os seus leitores e comunidade LGBTQIAPN+ no Brasil?
Leve nossa banda para o Brasil! Mal posso esperar para conhecer vocês!
Gostou do conteúdo? Você pode acompanhar a Jungle pelo Instagram, conhecer seu trabalho como vocalista e baixista da banda othersmayforgetyoubutnoti e ficar por dentro do que rola na Transparent.