Hoje o Brasil celebra o Dia Nacional da Visibilidade Trans, criado depois do ato de 29 de janeiro de 2004 para aumentar o incentivo de debates sobre a cidadania de pessoas trans travestis, transexuais e não-binárias. Mesmo que a data internacional seja comemorada no dia 31 de março, em homenagem à nossa celebração, que tal conhecer Jin Xing, uma dançarina e apresentadora transgênero chinesa que foi inspiração de diversas pessoas dentro e fora da comunidade LGBTQIAP+?
Do exército ao cenário internacional da dança
Jin Xing, filha de uma tradutora e um oficial do exército, nasceu em 1967, em Shenyang, cidade no nordeste da China, e cresceu em uma família de etnia coreana, sendo também conhecida como Kim Seong. Seu entusiasmo com as artes começou aos 9 anos, quando entrou na tropa do Exército de Libertação Popular, onde passou por um rigoroso treinamento militar, que moldou sua disciplina e resiliência, e também onde conheceu e dominou a arte da dança. Aos 19 anos, depois de se formar na Academia de Arte do Exército de Libertação Popular, ela ganhou uma bolsa de estudos de dança moderna em Nova York, se tornando a primeira dançarina chinesa a se especializar no estilo.
Com uma carreira consolidada e explorando com mais profundidade sua identidade de gênero, Xing voltou para a China para realizar a cirurgia de redesignação sexual, um momento que marcou sua vida pessoal e pública, por ser a primeira pessoa a conseguir autorização para realizar o procedimento e a ter esse momento totalmente documentado.
Ainda que se reconhecesse como mulher desde nova, a dançarina queria estar realmente preparada para anunciar sua identidade publicamente, uma vez que a imagem de pessoas transgêneros é muito estigmatizada no país. Para ela, a forma perfeita de conquistar uma aceitação maior foi através da consolidação do seu espaço no mercado.
Quando você não acumula poder suficiente, não consegue falar. Uma vez que você adquiriu força suficiente e as pessoas não podem derrubá-la, você pode enfrentá-las. – Jin em entrevista ao The New York Times.
Ainda que tenha sofrido uma complicação médica que quase a impediu de continuar dançando, ela voltou aos palcos em 1996, dançando, pela primeira vez, como a mulher que sempre soube ser e fundou a primeira escola privada de dança na China, conhecida como Jin Xing Dance Theatre. Jin compartilhou suas emoções em relação à sua apresentação nos palcos de Pequim, em 1996, com o Hollywood Reporter:
“Era janeiro de 1996. Eu nunca chorei no palco, mas daquela vez chorei quando fiz a reverência final. Eu estava pensando: ‘Sim, recuperei meu palco e recuperei minha perna’.”
Uma celebridade na China
A transição de Jin Xing, ainda que autorizada, foi um tabu no país, mas sua transição para a mídia chinesa conseguiu ultrapassar os comentários negativos sobre sua identidade. A mesma se tornou conhecida como “Língua Envenenada” em sua participação como jurada no “So You Think You Can Dance”, em 2013, por conta das suas opiniões diretas aos participantes e seu carisma, conquistando o público do programa.
Um pouco depois, estreou o “The Jin Xing Show”, transmitido pela Dragon TV, entre 2015 e 2017, um dos programas mais populares do país, alcançando milhões de visualizações semanalmente, e entrevistando figuras famosas, como Michelle Ye e Brad Pitt. O programa foi cancelado de repente em 2017 e, segundo a apresentadora, foi por conta de “pessoas que tinham inveja do seu sucesso”, mas detalhes sobre o assunto nunca foram divulgados e muitos acreditam que foi pela repressão governamental sobre ativismos relacionados a gênero, que ganhava mais força na época.
Para a audiência, o show era interessante porque Jin não segurava suas fortes opiniões sobre eventos sociais na China, como temas relacionados a mulheres e críticas ao comportamento de celebridades com uma grande fanbase. Eles comentam que ela “diz muitas coisas que a maioria dos artistas não falaria” e, por isso, foi uma grande celebração quando anunciaram o retorno do programa em 2022.
Mesmo que seja conhecida como uma pioneira e ícone LGBTQIAP+, Xing já declarou que não gosta de ser vista como uma ativista ou representante da comunidade, o que torna sua figura um pouco controversa. A dançarina acredita que o respeito é conquistado, não pedido, e inclusive critica aqueles que são muito dependentes do reconhecimento externo.
Sou muito individualista. Os jovens olham para mim e me chamam de ‘Estátua da Liberdade da China’. Talvez eu seja a pessoa que desafiou vários limites, mas não quero ser bloqueada, ou limitada na minha estrada! É isso – Comentou Jin em entrevista para o Hollywood Reporter.
“Coronel Jin Xing: um destino único”
Ainda que seja criticada por conta da sua posição controversa em relação a ser considerada uma porta voz para outras pessoas transgêneros em uma sociedade tão conservadora quanto a China, a popularidade e importância de Jin Xing para a comunidade no país e internacionalmente é inegável.
Como retratado no documentário “Coronel Jin Xing: um destino único”, de Sylvie Levey, lançado em 2001, Jin continua lutando contra os preconceitos e manipulações do governo chinês e da parte mais conservadora da sociedade contra pessoas transgêneros e LGBTQIAP+, buscando reafirmar seu espaço principalmente por meio da dança e se posicionando firmimente contra os boicotes do governo.
Para muitas pessoas transgêneros, dentro e fora da China continental, Jin é uma esperança de que a China possa se tornar mais progressista e abra espaço para mais transgêneros, assim como deu à Xing:
Sinto que é muito difícil ser ela, ser uma pessoa transgênero, mas permanecer tão ativa apresentando programas de TV e criando seu trabalho. Eu a acho muito admirável – Comentou Cyan, pseudônimo de um homem trans, à CNN.
Mesmo que a experiência de Jin Xing seja um exemplo bem sucedido, ainda que enfrente algumas repressões da população em certos momentos da sua carreira, a realidade de pessoas transgêneros na China é marcada por diversos desafios, como comentado por Cyan à CNN, que deixou o país pela falta de aceitação e acesso a serviços, como a cirurgia de redesignação, que tem um alto custo, precisa do consentimento dos pais e é extremamente burocratizada, dificultando o acesso à ela.
O futuro de pessoas LGBTQIAP+ é incerto no país e desanimador para muitos, que muitas vezes recorrem a uma vida dupla para escapar do julgamento e discriminação da sociedade e governo. As novas repressões às expressões artísticas de pessoas da comunidade por parte do governo, como aconteceu com uma das apresentações de Xing, deixa a comunidade cada vez mais cautelosa.
Apesar disso, a luta por aceitação e visibilidade continua sendo um ponto central e muitos chineses andam utilizando as redes sociais do país, como Weibo, Bili Bili e Xiaohongshu (REDnote), para afirmarem suas identidades e garantirem seus direitos.