O Japão é um país que deixou sua marca na indústria cultural, principalmente por conta das suas excelentes obras audiovisuais, em especial as animações. Contando com diversos estúdios responsáveis por personagens icônicos da nossa infância, um destaque especial deve ser dado ao Studio Ghibli. Fundado em 1985, o mesmo é responsável por animações conhecidas mundialmente, como “O serviço de entregas da Kiki” (1989), “Ponyo” (2008), entre inúmeras outras obras marcantes.
No entanto, além de trazer uma filmografia extensa, com histórias simples e recheadas de finais felizes, o estúdio adotou uma nova perspectiva em 1988 com o lançamento de “Túmulo dos Vagalumes” – ou “Grave of the Fireflies”-, responsável por retratar uma parte da realidade dos cidadãos japoneses durante a Segunda Guerra Mundial (1935-1945).
O LADO DO VENCEDOR
Acontecimentos históricos são constantemente estudados por aqueles que conseguem ingressar no sistema de ensino, desde o básico até mesmo ao ensino superior, em especial aos que escolhem se estabelecer na área de humanas. No entanto, um questionamento é sempre válido quando nos debruçamos sobre o assunto: qual é a perspectiva adotada pelo conteúdo que consumimos?
E a resposta é curta e clara: a do vencedor! Ou devemos colocar como “a dos países ocidentais ricos”, como Estados Unidos e Inglaterra? Independente de qual escolha de termo seja adotada, ambos são verdadeiros e se adequam quase como sinônimos. Assim, sendo um país cujas raízes educacionais são importadas de países europeus, como a França, a perspectiva histórica adotada no Brasil é a deles, enquanto a história dos demais é ignorada.
Enquanto, por um lado, estudamos com bastante detalhe e atenção a história de países como Estados Unidos, França e Inglaterra, por outro a de países como a China, Japão e Coreia – Norte e Sul – adentram na educação básica apenas quando estão correlacionada com a de países específicos, pois, afinal, quem não se lembra de ter estudado rapidamente sobre a Guerra do Ópio, envolvendo China e Inglaterra, a separação da Península Coreana, auxiliada pelos Estados Unidos e a antiga União Soviética, e, finalmente, a Segunda Guerra Mundial, na qual o Japão possui um papel tão importante no Pacífico, mas cuja importância é minimizada.
Não somente a vitória é contada na perspectiva do vencedor, como o sofrimento e horrores sofridos por sua população também. Por isso, indo em contramão, o Studio Ghibli traz ao espectador uma animação que realiza um recorte histórico do Japão, em especial o de sua população civil durante a guerra.
21 de setembro de 1945… essa foi a noite em que eu faleci.
Seita, Túmulo dos Vagalumes.
O BOMBARDEIO DE TÓQUIO
Entre os dias 9 e 10 de março de 1945, ano final da guerra, os cidadãos de Tóquio foram surpreendidos com um ataque aéreo realizado pelos Estados Unidos, causando uma chuva infernal de bombas incendiárias na Operação Meetinghouse e resultando em um dos piores massacres civis por bombardeio na história.
Nós não temos uma casa. Ela foi queimada.
Setsuko, Túmulo dos Vagalumes.
Com um número de vítimas fatais piores do que os de Hiroshima, o evento realizado com os poderosos B-29 causaram uma devastação na capital japonesa, principalmente pelo rápido espalhamento do fogo nas casas, majoritariamente construídas de madeira e papel, além de ventos fortes, que auxiliaram na intensificação do fogo.
O que chama atenção, principalmente com o relato dos sobreviventes, é como as principais vítimas foram crianças, mulheres e idosos, que compunham a população civil majoritária da cidade no momento, uma vez que grande maioria dos homens estavam ocupando as frentes de guerra, e o apagamento histórico do evento. Para além das perdas materiais e sentimentais, os sobreviventes precisavam lidar com as duras memórias do acontecimento e com suas consequências agravantes: fome e pobreza.
Essa tática ficou conhecida como bombardeio do terror e foi direcionada ao Japão Imeperial pela sua posição favorável a Alemanha Nazista durante o conflito. É notável que não se deve amenizar as ações terríveis do país, pois o mesmo foi responsável por diversos crimes de guerra durante o período, mas também não ameniza a perversidade da escolha estratégica tomada pelos Estados Unidos, causando sofrimento e medo de uma possível aniquilação ao atacar a população civil sem piedade.
Ainda assim, o acontecimento de março de 1945 fica escondido às sombras dos ataques atômicos de Hiroshima e Nagasaki. Sendo apagado dos registros históricos até mesmo do próprio Japão, apenas as vítimas mantêm a dura memória daqueles dois dias das terríveis chuvas de fogos mortais.
“Na verdade, embora a bomba atômica tenha deixado uma marca profunda na consciência colectiva do século XX, a memória dos bombardeamentos de áreas e das bombas incendiárias nas principais cidades rapidamente desapareceu da consciência de todos, exceto das vítimas” explica Mark Selden, jornalista do The Asia-Pacific Journal.
TÚMULO DOS VAGALUMES
Lançado em 1988, o “Túmulo dos Vagalumes” é uma das animações que integra a brilhante filmografia do Studio Ghibli. Ao contrário das demais obras da produtora, onde há sempre o doce final feliz, ela retrata a dura vida de um casal de irmãos, Seita e Setsuko, durante e após o ocorrido de março de 1945. Portanto, é importante lembrar que uma caixa de lenços e um coração preparado são ideais para assistir essa dolorosa e incrível obra.
Inspirado em um conto semi-autobiográfico de Akiyuki Nosaka, o filme é dirigido por Isao Takahata e animado pela produtora, sendo amplamente aclamado pela crítica. Fazendo com que o espectador acompanhe a luta pela sobrevivência dos irmãos durante a guerra, a animação traz grandes reflexões quanto ao assunto: dicotomias existem em conflitos armados como a Segunda Guerra Mundial? Porque, ao final, como ele demonstra, milhares de vidas e vínculos são perdidas no meio e as consequências caem sobre os sobreviventes, que precisam lidar com as árduas memórias de suas perdas.
Por que vagalumes têm que morrer tão cedo?
Setsuko, Túmulo dos Vagalumes
Em uma analogia com a curta vida dos vagalumes, a animação realça como as crianças deveriam dar-se e receber o direito à alegria e diversão, ao contrário do que Seita e Setsuko enfrentam na maior parte das suas vidas.
O filme apresenta ao espectador de forma delicada essa crítica, deixando-o se deliciar com cenas felizes dos dois irmãos com as mínimas coisas que os afastavam da incessante e terrível guerra, mas nos deixando com um amargo na boca ao final, quando ambos passam a ser apenas mais um número entre o total de vítimas, cuja inocência foi apagada assim como sua lata de doces, arremessada ao lixo por não ter valor a quem lhe encontrou.
Nesse ano de 2024, o Studio Ghibli novamente retorna às animações com ambientações temporais históricas reais, com o lançamento de “O Menino e a Garça”. Também baseado na Guerra do Pacífico, o filme é vencedor do Globo de Ouro de 2023 e será lançado nos cinemas brasileiros em 22 de fevereiro. Muito mais do que apenas simples animações, ambas as obras entregam uma grande sensibilidade e delicadeza, assim como reflexões, deixando, por fim, o questionamento de até quando iremos continuar apagando as memórias dessas vítimas.