Luta por dignidade e demonstrações de honra e humanismo seriam algumas das formas como eu resumiria “O motorista de táxi” (2017), de JangHoon. O filme foi representante da Coreia do Sul para concorrer à nomeação de melhor filme estrangeiro no Oscar 2018 (infelizmente não conseguiu) e traz um retrato da Coreia diferente do que as produções audiovisuais populares costumam mostrar. Longe de eras governadas por reis, o longa mostra os militares no poder e a luta da população pelo simples objetivo de viver com decência e sem medo da repressão militar. O longa retrata uma história real que ocorreu durante o Massacre de Gwangju, onde a população se uniu em um levante contra a ditadura de Chun Doohwan.
Inicialmente o filme, que começa com seu carismático protagonista, o taxista Kim Manseob (interpretado por Song Kangho), dirigindo e cantando pelas ruas de Seul, dá a impressão de que será conduzido de maneira leve e divertida até o fim. E por boa parte da trama, o bom humor ainda prevalece, mesmo em um momento de tão forte crise.
Tudo começa quando o jornalista alemão Peter, que morava há algum tempo no Japão, fica sabendo por alguns colegas de profissão sobre o cenário de conflito que ocorria na Coreia do Sul, especificamente em Gwangju. O encontro entre ele e o taxista ocorre logo que chega à Seul e Manseob, ao escutar o motorista de uma companhia de taxi se gabar sobre a corrida cara com um estrangeiro, resolve roubar o trampo do cara. A partir de então, passamos algum tempo do filme apenas testemunhando as farpas trocadas pelos dois. Manseob arranha um pouco no inglês, mas Peter não entende nada de coreano e isso acaba atrapalhando os dois por boa parte do filme, já que acabam se encontrando em diversas situações de desentendimento.
As primeiras aparições dos militares no filme não chocam nem ao espectador, nem aos dois homens, que buscam formas de chegar a cidade de Gwangju, mesmo constatando que todos os acessos estão bloqueados por soldados. Esse ponto já mostra a falta de informação da própria população sobre a situação de seu país, além de um indício da desonestidade e falta de ética da mídia em retratar os ocorridos, algo que é melhor explorado no aprofundamento do filme.
As duas horas e dezessete minutos acabam pesando em algum momento. O filme parece se alongar além do necessário, mas a história em aberto acaba prendendo o espectador curioso que questiona até onde toda aquela insanidade vai. Afinal é de se admitir que não é qualquer pessoa que, mesmo vendo a gravidade da situação, deixaria a filha pequena sozinha em casa por uma noite que seja, apenas para ajudar quem necessita. E com isso também já vislumbramos o caráter de Manseob. Após um dia de perrengues e a epifania de que o serviço militar ao qual serviu não age com a honra esperada, ele tem a chance de voltar para sua casa, e no meio do caminho decide ficar para ajudar as pessoas que conheceu. Mantendo sua integridade como pessoa e profissional, dualidade que é até discutida entre ele e outros taxistas durante o filme.
As cenas nas zonas mais críticas da cidade são fortes: pessoas sendo baleadas mesmo quando não estão protestando (momento em que normalmente essas covardias acontecem), hospital lotado de pessoas gravemente feridas e desespero de pessoas por não saberem o paradeiro de familiares e amigos. E quando repito “pessoas” dessa forma é porque entendo como isso mostra a humanidade de cada uma delas e como em um momento como este, elas podem contar apenas umas com as outras para que consigam sair daquela situação.
Neste caso, o repórter Peter é um dos principais agentes. Os jornalistas locais não tem permissão de seus superiores nem liberdade de imprensa para publicar e noticiar os fatos que acontecem na cidade, então todos veem em Peter uma esperança de mostrar ao mundo o que está acontecendo. O jornalista alemão, por sua vez, conta com a ajuda do universitário Jaesik (interpretado por Ryu Junyeol. Ele mesmo, o Junghwan de Reply 1988) para agir como tradutor e de Manseob para transportá-los. Eles contam ainda com a ajuda de outros motoristas de táxi, um repórter local e qualquer cidadão que se mostre prestativo o bastante, sempre agindo em prol da população. A barreira da língua na comunicação, que inicialmente atrapalha e traz confusões, aos poucos diminui e os personagens passam a se entender até mesmo através de simples olhares. Tudo isso mostrando que, em momentos de crise, as relações humanas se tornam ainda mais latentes e indispensáveis.
É o que assistimos nas cenas mais intensas do filme. Os motoristas de táxi de Gwangju assumem a posição de heróis da vida real, arriscando suas vidas para tirar os feridos da zona de confronto e posteriormente para ajudar os protagonistas a chegarem vivos em Seul, para que as notícias atinjam o mundo. E mesmo que alguns tenham que colocar as próprias vidas em risco, o objetivo é alcançado.
A história de Peter e Manseob é verdadeira. Os momentos finais do filme mostram como o jornalista passou anos procurando pelo taxista, que havia informado seu número de telefone errado e dado o nome de Kim Sabok, para não ser encontrado e para que eles não corressem o mesmo risco que correram naquela jornada de dois dias em Gwangju. Peter, o verdadeiro, não o interpretado por Thomas Kretschmann, comenta na cena final sobre como ficaria feliz e voaria para Seul no mesmo instante caso algum dia soubesse do paradeiro do amigo que fez dentro de um táxi em maio de 1980.
O filme já saiu de cartaz no Brasil, mas vocês podem conferir no Viki.
Apesar de longo, ao fim você, assim como os personagens, respira, sorri e sente um misto de tristeza (por aqueles que se foram de maneira tão injusta), saudade (de um amigo que não vê há anos) e alívio – por saber que tudo acabou e o dever foi cumprido.