“Os personagens e acontecimentos retratados neste filme são fictícios” são as palavras que antecedem a primeira cena. Apesar disso, as coincidências entre ficção e fatos da época em que o filme é ambientado não são poucas, fazendo com que O barbeiro do presidente (2004) seja quase uma aula de história.
Dirigido por Im ChanSang, o longa é ambientado entre as décadas de 60 e 70, e conta a história de Sung HanMo (Song KangHo), um barbeiro que mora no mesmo bairro da residência presidencial coreana, a Casa Azul. Através da narração de seu filho, NakAn (Lee JaeEung/Noh HyungOk), acompanhamos mais de uma década de sua vida – desde o início do romance com MinJa (Moon SoRi), sua esposa e mãe de seu filho, até as consequências decorrentes da proximidade com o presidente e lealdade a pátria.
Com uma primeira cena onde o barbeiro se divide entre cortar cabelo de um cliente e olhar a bunda de sua colega de trabalho – futuramente sua esposa -, o início do filme e seu tom de comédia pastelão podem desanimar alguns espectadores – eu, inclusive. A princípio parece que toda a história será contada neste tom humorístico e, ao fim das quase duas horas de duração, me peguei pensando que até mesmo este aspecto, que não me agradou, fez total sentido para a construção da narrativa.
Esses temas estão presentes ainda em um dos aspectos mais interessantes do filme: a semelhança entre ficção e história real – que confesso, só descobri que existia porque resolvi pesquisar sobre o período político da época. MinJa, por exemplo, entra em trabalho de parto durante a Revolução de Abril, evento que tanto no filme quanto na vida real, culminou na renúncia de um presidente e foi seguido por um golpe de estado, que manteve o líder seguinte no poder por mais de dez anos.
Ainda nas similaridades de cenário político, a influência dos Estados Unidos, aparece na forma de JinGi, um personagem caricato, que se inspira em grandes ídolos estadunidenses da época, como Elvis Presley, Grace Kelly e Muhammad Ali. JinGi tem ainda um sonho nada comum: servir na Guerra do Vietnã. Essa aspiração do personagem soa como o resultado do jogo político dos Estados Unidos, que busca conquistar a admiração do povo coreano, mas rejeita a proximidade decorrente dessa relação.
E é a partir dessa perseguição e da invenção dessa doença, em uma passagem marcante e também abordada com humor, que o tom do filme muda completamente. As entrelinhas de acontecimentos desproporcionais e estranhos, que tomaram a primeira parte do filme, se revelam como fio condutor da segunda metade do filme, onde o drama é carregado – tocando em temas como a consequências da tortura física e psicológica executada pelo próprio governo.
Através das dificuldades que a família passa a enfrentar após um trauma decorrente dessas torturas, vislumbramos também a humanidade dos personagens. Em uma das cenas mais emocionantes do filme, assistimos ao rompimento da persona otimista e alegre de HanMo, dando lugar a um pai de família completamente frustrado.
MinJa, por sua vez, acaba não ganhando muito destaque, apesar de ser uma mãe sofrendo pela dor de seu filho. A falta de uma maior presença feminina não chega a prejudicar a história, que leva a um desenvolvimento de personagem notável para HanMo. Mas, de fato, uma participação mais expressiva de MinJa poderia tornar o amadurecimento da família ainda mais interessante de se assistir.
As últimas cenas imprimem, de forma sensível e divertida, o início de uma nova jornada, onde HanMo deixa para trás sua submissão a líderes políticos e inicia um novo caminho – mais livre e ao lado de um NakAn adulto, de coração e pernas curados.
Inicialmente, os 116 minutos podem parecer uma eternidade, mas existe um potencial para prender a atenção, caso você tenha a paciência de esperar que o ritmo e os personagens te conquistem. Disponível na Netflix, O barbeiro do presidente, entrega de forma emocionante e cativante o retrato de uma era.
Texto por Bea @ Equipe de redação da K4US
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