A declaração da Lei Marcial na Coreia do Sul foi responsável por causar uma grande movimentação nas ruas e nas redes sociais pedindo o impeachment do Presidente Yoon. Os protestos não ocorrem somente pela insatisfação que já existia em relação ao governante, mas também pelas dolorosas memórias da época ditatorial que o país vivenciou entre as décadas de 1970 e 1980. Para os que estão perdidos no assunto, segue um guia sobre!

O então Presidente da República da Coreia, Yoon Suk Yeol, declarou a Lei Marcial em uma conferência emergencial. De acordo com o artigo 77 da Constituição sul-coreana, o Presidente pode tomar essa medida em situações de guerra, emergências nacionais ou para manter a ordem pública

Yoon justificou que a decisão foi necessária para proteger o país das ameaças da Coreia do Norte e para acabar com os elementos “anti-estatais pró-Norte” dentro da nação sul-coreana, que estavam ameaçando a liberdade e a felicidade dos civis. Com a Lei Marcial, ele estaria evitando a ruína da República. Essa foi a primeira vez desde 1979, durante a ditadura militar, que a Lei Marcial foi instaurada, levantando questionamentos sobre se ela seria realmente uma resposta emergencial ou uma forma de proteger o poder político, já que restringe direitos civis. 

Foto do Presidente Yoon Suk Yeol, responsável por declarar a Lei Marcial no dia 03 e gerar uma série de protestos na Coreia do Sul.

Quando uma Lei Marcial é instaurada, cidadãos podem ser presos sem mandado, toques de recolher podem ser impostos e inspeções aleatórias pela polícia também podem ocorrer. Esse protagonismo policial em favor do Presidente Yoon foi percebido logo após o anúncio, quando a polícia bloqueou as entradas da Assembleia Nacional para impedir que os legisladores revogassem a Lei Marcial, o que poderia acontecer com o voto de 150 membros da instituição. 

Uma hora após a declaração, Yoon indicou o Chefe do Estado-Maior do Exército, General Park Ahn Soo, como Comandante da Lei Marcial. O General emitiu também a Proclamação nº1, declarando que:

  1. Atividades políticas, como manifestações e reuniões, estavam proibidas.
  2. Todos os meios de comunicação e publicações estavam sujeitos ao controle do Comando da Lei Marcial.
  3. Todos os médicos, incluindo internos, que estavam em greve ou tinham abandonado o posto médico deveriam regressar às suas funções no prazo de 48 horas e servir com diligência. Se isso não fosse cumprido, eles poderiam ser punidos severamente.
  4. Quem violasse a lei ou fosse entendido como “anti-estatais pró-Norte” poderia ser preso, detido ou revistado sem mandado. Os demais civis poderiam viver suas vidas normalmente. 

O terceiro tópico da Proclamação repercutiu não apenas por ser uma medida tomada contra as greves médicas que estavam ocorrendo pelo país, mas também pela utilização de um termo específico utilizado para a punição dos infratores. Em coreano, a palavra utilizada foi “처단한다” (cheodanhanda), que significa “tomar medidas decisivas para lidar com ou eliminar alguém” e que tem como sinônimo as palavras “punição”, “purgação” e “morte”, fazendo com que os civis se indignassem e indagassem como um Presidente poderia utilizar tal termo contra a população de uma sociedade democrática, aumentando os sentimentos de revolta. 

Tropas do exército foram enviadas ao centro de Seul, com helicópteros e outros veículos militares transportando soldados armados para a Assembleia Nacional. No local, civis e jornalistas, irritados e ansiosos com a situação, começaram a se concentrar na frente do prédio. Embates ocorreram quando soldados tentaram invadir a Assembleia, de forma que civis formaram barreiras com seus corpos para impedir, resultando em um confronto que, inclusive, repercutiu com o vídeo da Ahn Gwi Ryeong, porta-voz do Partido Democrático, segurando a arma de um dos soldados.

Ao mesmo tempo, com a ajuda dos civis, os funcionários e assessores, os membros da organização escalaram os muros do prédio e a maioria conseguiu se reunir no plenário por volta da 00h30 do dia 04. 

Ainda na tentativa de invasão, as tropas militares começaram a quebrar as janelas da instituição e, para evitar sua entrada, os legisladores e seus assistentes começaram a fazer barricadas nas portas com móveis e outros itens do local.

Com a maioria dos legisladores titulares presentes, o Presidente da Assembleia Nacional convocou uma sessão de plenária – uma reunião de todos os membros para debater e votar algumas decisões que dizem respeito à elaboração de leis, fiscalização de atos do governo, etc. A Lei Marcial foi suspensa por 190 votos a favor. 

Depois de seis horas, o Presidente Yoon retirou as tropas militares e suspendeu a Lei. No mesmo dia, os seis partidos da oposição apresentaram um pedido de impeachment, acusando Yoon de violar a constituição ao não notificar imediatamente a Assembleia sobre a medida, além de considerar o bloqueio do prédio um ato de rebelião, uma vez que o país não estava em estado de guerra ou emergência. 

Yoon realizou uma nova declaração pública à nação, afirmando que havia sim uma urgência que levou a Lei Marcial a ser instaurada, mas pedindo desculpas ao público pela ansiedade e inconveniência causada. Apesar de sua declaração, a população continuou insatisfeita com a situação e diversos protestos continuaram ao redor do país, com um número grande de pessoas, desde jovens estudantes a idosos, exigindo a renúncia do Presidente e aguardando a decisão dos legisladores sobre o pedido de impeachment, que ocorreria às 17h. 

A sessão plenária da Assembleia Nacional foi composta por duas agendas: uma propondo a nomeação de um procurador especial para investigar o caso de manipulação envolvendo a Primeira Dama e a segunda pedindo o impeachment do presidente. 

Durante a primeira agenda, os membros do Partido do Poder Popular, ao qual Yoon Suk Yeol pertence, deixaram o plenário enquanto os votos eram contados. Para a aprovação de um impeachment, eram necessários 200 votos a favor dos 300 legisladores

Ainda que a oposição contasse com 192 membros, eram necessários pelo menos 8 votos a favor de membros do Partido do Presidente. Mas, pela rejeição ao voto do partido, a proposta obteve apenas 195 votos, sendo rejeitada

Os cidadãos ficaram profundamente irritados e perderam a confiança quando viram os legisladores se recusando a expressarem suas opiniões estando em uma posição destinada a representar a voz do povo. Também irritados, os partidos opositores criticaram a postura dos legisladores pelo boicote à votação, afirmando que apresentariam novas propostas de impeachment toda semana e tentariam uma votação. 

No dia 12, a frustração com a rejeição do impeachment e a justificação do Presidente Yoon de que a Lei Marcial foi um ato legítimo de governança e, por conta disso, ele não renunciaria do seu cargo, levou o Grupo de Estudante em Solidariedade aos Trabalhadores (tradução livre do termo “노동자연대 학생그룹”) e os conselhos estudantis de mais de 15 universidades, incluindo a Yonsei e a Universidade Nacional da Coreia, a organizaram protestos para o dia 13, um dia antes da nova votação de impeachment. Os protestos, com cerca de quase 4.500 pessoas bloqueando a avenida próxima à Yonsei, exigiam a renúncia do presidente e respeito a democracia do país. 

Manifestantes em protestos com diversos cartazes pedindo o impeachment e prisão do Presidente Yoon Suk Yeol.

Os organizadores comparavam, em uma declaração oficial em seu site, a situação política sul-coreana com outros eventos mundiais, como o golpe de Pinochet no Chile (1973), e declaravam que, mesmo que o impeachment contra Yoon fosse aprovado, o processo é lento e outras tentativas de golpes poderiam acontecer. Por isso, eles reforçaram a necessidade de continuar se mobilizando nas ruas, relembrando outros movimentos de luta no país, como a Revolta de Gwangju (1980) e o movimento contra Park Geun Hye (2016). 

O comício contou com estudantes de diversas partes do país que organizaram transporte para os manifestantes, unidos  para enfatizar a insatisfação com a falta de responsabilidade do discurso do Presidente e dos membros do seu partido. Ao contrário dos protestos brasileiros, o movimento sul-coreano é pacífico, normalmente composto por luzes de velas, elementos culturais e estandes que, nesse caso, ajudaram os manifestantes a se aquecerem no frio.

Parte dessa passividade é expressada no uso de músicas de k-pop nos protestos, como uma espécie de trilha sonora. Segundo o crítico de cultura pop Kim Hern Sik ao The Korean Times, as músicas são utilizadas porque “abordam lutas universais e a determinação de seguir em frente sem perder a esperança. Elas suavizam a atmosfera intensa dos protestos, expande a empatia e fortalece a solidariedade. Elas elevam os protestos além das demonstrações físicas, criando uma expressão cultural de entendimento compartilhado.”

Sucessos como “Into the New World”, do Girls’ Generation, tomaram as ruas sul-coreanas e substituíram o hino nacional, demonstrando a presença dos jovens ao movimento. Ainda assim, os manifestantes mais velhos também se uniram à tendência, aprendendo as letras das músicas enquanto também ensinavam hinos que marcaram movimentos democráticos nas décadas de 1970 e 1980. 

Hoje, dia 14, a votação para um novo pedido de impeachment foi realizada às 16h no horário de Seul – 04h da manhã no de Brasília. Como haviam declarado oficialmente, alguns membros do Partido do Poder Popular votaram a favor da moção de impeachment, que foi aprovada com 204 votos.

Com a aprovação, as atividades presenciais de Yoon Suk Yeol estão suspensas e o processo passa para o Tribunal Constitucional, que votará se a moção é mantida ou negada. Por enquanto, o governo sul-coreano está sob a governança do Primeiro-ministro Han Duck Soo.

Foto do Primeiro Ministro da Coreia do Sul, Han Duck Soo, que assume o cargo de Presidente até a aprovação do pedido de impeachment no Tribunal Constitucional.

Para você entender rapidamente o processo de impeachment na Coreia do Sul: após a votação ser aprovada na Assembleia Nacional e o Presidente ser afastado de seu cargo, o processo é dirigido para o Tribunal Constitucional, que tem até 180 dias para decidir se a moção será aprovada. Por conta das grandes movimentações, as votações devem ocorrer ainda nas próximas semanas. Se o processo for aprovado, ele é finalizado e novas eleições devem ocorrer em 60 dias.

Os desenrolares dessa situação só serão descobertos verdadeiramente no futuro, mas, se tem uma coisa que pode ser tirada dela é que os coreanos estão prontos para defender sua democracia e se manterem firmes ao Artigo 1 de sua Constituição, que não somente estabelece que a República da Coreia é uma República Democrática, mas também que sua soberania reside no povo e toda autoridade estatal deve vir dele