Na educação básica brasileira, estudamos a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) frequentemente sob a perspectiva dos países europeus, como a Inglaterra, do lado dos Aliados, e a Alemanha, do lado do Eixo. No entanto, pouco se fala sobre as políticas cruéis adotadas pelo Japão na região do Pacífico durante o conflito e, menos ainda, sobre a perseguição sofrida pelos imigrantes dos países do Eixo, especialmente pela comunidade nipônica, no Brasil. 

Quantos de nós já ouvimos falar sobre a perseguição política aos imigrantes na costa brasileira ou sobre os crimes cometidos na Ilha Anchieta? Provavelmente poucos. Foi uma surpresa para muitos quando o Estado brasileiro, por meio da Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, fez seu primeiro pedido de desculpas, no final de agosto, pela repressão direcionada aos nikkeis – termo japonês utilizado para descendentes de japoneses nascidos fora do Japão ou para japoneses que vivem regularmente no exterior. 

O  pedido de reparação coletiva foi apresentado pelo produtor audiovisual Mario Jun Okuhara e pela Associação Okinawa Kenjin do Brasil, em nome de toda a comunidade nipônica, e refere-se a dois episódios da guerra. O primeiro trata da expulsão de imigrantes japoneses de suas casas em Santos, durante o conflito, pelo Brasil, então apoiador dos Aliados. O segundo envolve as alegações de tortura, maus-tratos e discriminação sofridos por imigrantes detidos no Instituto Correcional de Ilha Anchieta, em Ubatuba, no litoral norte de São Paulo.

Registrado em 2015, o pedido ficou quase dez anos em tramitação na Comissão de Anistia, sendo negado em 2021 durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro. Mas, com a reformulação da comissão no primeiro semestre de 2023, os autores recorreram e obtiveram uma resposta positiva em 25 de agosto, quando a presidenta da Comissão, Eneá de Stutz e Almeida, pediu desculpas em nome do Estado brasileiro aos descendentes dos imigrantes japoneses presentes na sessão.

Quero pedir desculpas em nome do Estado Brasileiro pela perseguição que os antepassados dos senhores e das senhoras sofreram, por todas as atrocidades e crueldades, o preconceito, a xenofobia, o racismo. Que essas histórias sejam contadas para que isso nunca mais se repita.

Eneá de Stutz e Almeida

O Brasil tem a maior comunidade japonesa fora do Japão, com cerca de 2,7 milhões de pessoas, fruto da intensa imigração que começou a partir de 1908, especialmente para a região do litoral paulista.

Durante a ditadura do Estado Novo (1937-1945) e o governo de Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), a comunidade nipônica no país enfrentou censura, restrições de movimentos e de associação, e prisões arbitrárias. Após declarar apoio aos Aliados em 1942, o Brasil cortou relações diplomáticas com o Japão e iniciou políticas de perseguição aos imigrantes dos países do Eixo – Alemanha, Itália e Japão. Rádios, livros e documentos foram confiscados, associações proibidas e muitos imigrantes japoneses foram forçados a deixar suas casas e se realocar em campos ou áreas do interior.

Com o fim da guerra e a falta de acesso a mídias de comunicação, a comunidade nipônica no Brasil dividiu-se entre os “kachigumi”, que acreditavam na vitória do Japão, e os “makegumi”, que aceitavam a rendição do país. Para a coordenadora da Comissão Nacional da Verdade, Rosa Cardoso, as restrições aos veículos de comunicação contribuíram para essa divisão, fazendo com que o isolamento e a censura intensificassem o conflito dentro da comunidade.

Após ataques de extremistas kachigumi contra membros makegumi, 172 indivíduos ligados ao primeiro grupo foram presos e torturados na Ilha Anchieta por autoridades brasileiras entre 1946 e 1948. Desses, quase 140 supostamente não tinham qualquer envolvimento com os ataques.

Este momento histórico, amplamente reconhecido e repercutido tanto em âmbito nacional como internacional, marca um passo importante na justiça de transição e no reconhecimento das graves violações sofridas pelos imigrantes japoneses e seus descendentes durante a Segunda Guerra Mundial e no pós-guerra.

afirmou Mario Jun Okuhara, em carta aberta ao Conselho do Bunkyo

A Associação Okinawa Kenjin do Brasil (AOKB), fundada em 1926 e dedicada a ajudar na entrada de imigrantes okinawanos no Brasil e à preservação da cultura tradicional entre as novas gerações, uniu-se a Mario Jun Okuhara, produtor audiovisual, para fazer o pedido de reparação coletiva aos imigrantes japoneses.

Embora o trabalho da associação seja de grande importância, é essencial destacar o papel de Mario Jun Okuhara. Seu envolvimento não é por acaso, uma vez que grande parte de seu trabalho é dedicado a compartilhar as experiências da comunidade nipônica brasileira. Um exemplo disso é o documentário “Yami no Ichinichi – O Crime que Abalou a Colônia Japonesa no Brasil” (2012), que aborda a violação dos direitos humanos dos imigrantes japoneses e conta a história de Tokuichi Hidaka, assassino do coronel Jinsaku Wakayama, líder da Shindo Renmei, a maior organização ultranacionalista japonesa no Brasil.

Okuhara é um dos líderes na busca de uma retratação pública do governo brasileiro pelas torturas e mortes sofridas pela comunidade nipônica. Ele acredita que o papel dos nikkei na construção do Brasil só pode ser plenamente reconhecido se a sociedade brasileira entender os crimes brutais a que esses imigrantes foram submetidos pelo Estado, afirmando que:

O período da ditadura Vargas demonstrou a força de resistência dos imigrantes japoneses, que sofreram uma brutal violência do Estado. Se a comunidade nega ou generaliza os casos de tortura e morte de imigrantes japoneses, terá que rever seus conceitos e seu papel na sociedade brasileira.

Okuhara para a Revista Memai

O documentário dá voz aos imigrantes, narrando seu passado durante o Estado Novo – um passado que até então era conhecido como pacífico, mas que escondia um silêncio desconcertante sobre as décadas de 1930 e 1940. A produção evidencia as atrocidades impostas à comunidade, desde o fechamento de escolas, a proibição da fala na língua materna, até as prisões arbitrárias, sendo o encarceramento na Ilha Anchieta o episódio mais grave.

Este pedido de desculpas não é apenas um marco na história dos direitos humanos no Brasil, mas também uma reflexão sobre como tratamos a memória e as contribuições de diferentes comunidades para a formação de nossa identidade nacional. Em junho de 2024, celebramos 116 anos da chegada da comunidade nipônica ao Brasil, uma população que, assim como muitas outras, desempenhou um papel fundamental na construção do país que conhecemos hoje.

Se o Brasil abriga a maior comunidade nipônica fora do Japão, com cerca de 2,7 milhões de descendentes, por que nosso Estado demorou tanto para reconhecer as crueldades cometidas contra esses imigrantes? Ao longo dos anos, esses crimes foram mascarados por um “reconhecimento” superficial da importância da comunidade japonesa na nossa formação. Este pedido de desculpas, embora tardio, é um passo crucial para que possamos finalmente confrontar esse passado, assim como Mario Jun Okuhara buscava.