“Sempre me senti como uma garota, que amava brincar com bonecas”. A declaração é de Lee Kyung Eun, ou simplesmente Harisu, em entrevista para o jornal Chosun, em 2001, ano em que a artista ganhou os holofotes sul-coreanos ao estrelar um comercial para a marca de cosméticos DoDo. Desde então, lançou álbuns de estúdio e também participou de séries e filmes ao longo de mais de 30 anos de carreira.
A transexualidade da cantora foi, talvez, o principal chamariz para o início de seu sucesso enquanto artista. Todo o comercial, aliás, é construído para “surpreender” o público, ao revelar que a bela mulher, em termos bem transfóbicos para época, “era um homem”, ao mostrar que ela possuía um pomo de Adão ‒ adicionado, inclusive, digitalmente. Os debates sobre transexualidade em todo mundo não existiam na época, pelo menos da forma que é hoje, então um comercial com esse tom era como mais uma terça-feira qualquer.
Sucesso imediato
O vídeo foi um divisor de águas na carreira da artista ‒ ela já possuía outros trabalhos como atriz desde a década de 1990 ‒ e logo já emplacou um documentário para a KBS que explorava um pouco de sua vida. Posteriormente, ela lançou um livro autobiográfico, “Eva de Adão” (em tradução literal).
2001 foi um ano agitado para Harisu. Ainda naquele mesmo ano, ela lançou o seu primeiro disco, “Temptation”, que lhe rendeu uma indicação a Best New Artist no Mnet Asian Music Awards (MAMA) ‒ quando ainda era Mnet Music Video Festial (MMFV), se tornando a primeira artista abertamente transsexual a ser indicada na premiação. Infelizmente, ela não venceu, perdendo para a cantora pop Wax.
Apesar de todo sucesso e reconhecimento da mídia, Harisu ainda não era, legalmente, reconhecida como uma mulher. Isso só aconteceu em 2002 quando a corte de Incheon reconheceu seu gênero. Ela foi a segunda pessoa na Coreia do Sul a fazer essa mudança legal.
Também em 2002 foi quando Harisu lançou o seu segundo álbum, “Liar”. A faixa-título foi o single principal, se tornando o maior sucesso da cantora, e a coreografia da canção rendeu a segunda indicação da cantora ao MAMA, na categoria Best Dance Performance. Novamente, Harisu não passou da indicação e não levou o prêmio para casa, perdendo para ninguém mais, ninguém menos, que BoA e seu hit “No. 1”.
O impacto de Harisu foi tão grande que a artista acabou se tornando uma referência quando o assunto era transsexualidade. Em 2004, por exemplo, ela se tornou uma espécie de conselheira para o Yahoo! Korea e respondeu 70 perguntas sobre sexualidade, enviadas por internautas, ao lado de Gu Seong-ae, especialista no assunto.
Domínio na Ásia
Se tornar essa referência na Coreia do Sul pode ter sido exaustivo, apesar de ter sido um desejo seu, tanto que em 2004 Harisu foi para Taiwan após o lançamento de seu terceiro álbum, “Foxy Lady”, e construiu uma carreira por lá com o drama “Hi, Honey”. Ela ainda participou do filme “Colour Blossoms” (Hong Kong) no final daquele ano. O longa-metragem foi um sucesso em festivais.
A temporada longe da Coreia do Sul foi curta e durou cerca de um ano. Já em 2005, Harisu estava de volta ao seu país para o seu primeiro grande papel para a TV, em “Beating Heart”, da MBC. Sua transexualidade foi pauta para o papel, já que ela interpretou Kim Chang Ho, uma mulher transsexual que volta para casa para tentar ser aceita em sua família.
Outros dois grandes papéis de Harisu paro cinema e TV aconteceram em 2006 e 2007. Em 2006, ela interpretou Lisu, uma cantora que foi assassinada e se tornou uma fantasma em busca de vingança no filme malaio “Possessed”. Já em 2007, no drama “Police Line”, ela deu vida a uma policial que foi abusada pelo padrasto ainda na infância.
Outros trabalhos
Toda a carreira de Harisu foi muito além disso. Entre os momentos mais memoráveis, ela lançou trilha sonora para um filme no início da carreira, alguns singles soltos, um álbum de Natal e participou de um novo documentário, desta vez para a MBC, cumprindo o checklist de todo grande artista da cultura pop. Ela foi o momento, não tem como negar.
Neste meio tempo, ela chegou a abrir um clube para a população trans da Coreia do Sul. O Mix-Trans foi inaugurado em junho de 2009, após a morte de dois artistas LGBTQIAP+, Jang Chae Won e Kim Jihoo. “Meu coração se partiu após ouvir a notícia da morte dos meus amigos e colegas. Eu quero fazer um espaço incrível para pessoas que sofreram dor após se assumirem”, declarou na época.
O último trabalho enquanto cantora de Harisu foi “Make Your Life”, em 2018, seis anos após o lançamento de “Shopping Girl”, em 2012. Desde então, a artista faz uma aparição aqui e ali em programas de TV sul-coreanos, mantendo vivo um legado de três décadas que serviu (e ainda serve!) de inspiração para toda a comunidade LGBTQIAP+.