A Coreia do Sul é um dos países mais conservadores e não esconde isso. Recentemente, pessoas que fazem parte da comunidade LGBTQIA+ foram violentadas nas ruas e até a Parada do Orgulho, que é realizada há mais de 20 anos, estava correndo o risco de não acontecer em 2022. Em um cenário como este, é importante que existam figuras como Hurricane Kimchi, drag queen e ativista coreana, que luta pelos direitos da comunidade queer em seu país.

Em uma conversa super importante concebida à K4US, Hurricane falou sobre os direitos da comunidade LGBTQIA+ na Coreia do Sul, a lei contra discriminação e sobre a Parada do Orgulho Queer, realizada em Seul. Além disso, Kimchi contou como sua drag nasceu e como passou a usar sua performance para ser ativista e ajudar a comunidade. Confira!


No dia 17 de Maio é comemorado o Dia Internacional contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia. Pensando em seus amigos, pessoas próximas e a comunidade LGBTQIA+ sul-coreana como um todo, você acha que o cenário atual para vocês é realmente para ser celebrado?

Nós temos vários eventos para o Dia Internacional Contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia aqui em Seul todo o ano. Olhando para trás, tivemos um longo caminho e ainda temos muito o que seguir até que todas as pessoas em nossa comunidade sintam-se seguras para ser quem realmente são, sem se preocupar em arriscar tudo o que importa para elas família, amigos, casa, trabalho, saúde mental e física, etc.

A comunidade LGBTQIA+ nem sequer era mencionada na mídia ou comentada abertamente entre as pessoas quando eu era criança. Porém, agora, nós reconhecemos a comunidade e falamos sobre ela, mas isso não significa que isso é feito em um ambiente seguro. Quanto mais visíveis estamos, mais agressivos e odiosos os religiosos (a maioria conservadores cristãos) e grupos políticos ficam.

De acordo com uma pesquisa realizada pelo Gallup Korea, o apoio para a lei contra a discriminação já é maioria entre a população sul-coreana e partidos políticos. Por outro lado, há a presença de políticos com ideias homofóbicas ocupando posições no novo governo. Você acredita que com essa dualidade há possibilidades reais para fazer com que essa lei necessária e urgente torne-se realidade logo?

Já faz 14 anos que essa lei começou a entrar em discussão e ela ainda não aconteceu. Definitivamente ela é bem mais mencionada e comentada hoje em dia, mas nós nunca saberemos até ela entrar em vigor. Existem políticos que também estão tentando deixar de lado artigos relacionados à “orientação sexual LGBTQIA+”, então se essa é a lei contra a discriminação que eles estão falando e querem, então, realmente, ela é ineficaz para nós.

Recentemete, Holland — um dos poucos artistas coreanos que são abertamente gays — foi vítima de um ataque homofóbico, sofrendo violência física e verbal. Com esse ocorrido, surgem várias dúvidas para aqueles que não vivem a realidade LGBTQIA+ na Coreia. Infelizmente, essa é uma experiência comum para a comunidade e não ouvimos falar sobre isso, pois as vítimas não são figuras públicas? Você acha que se a lei contra a discriminação já estivesse em vigor, Holland e a comunidade, no geral, estaria mais protegida?

Comparado com os Estados Unidos e outros países ocidentais, a violência física na Coreia do Sul não tem tanta ocorrência ou visibilidade, mas com certeza acontece e, se você for a vítima, as estatísticas e “frequências” não importam. Testemunhamos vários grupos cristãos e indivíduos a agredir e machucar fisicamente pessoas na Primeira Parada do

Orgulho de Incheon (Festival da Cultura Queer de Incheon).
Como disse anteriormente, quanto mais visibilidade temos, mais somos atacados também. Acho que é parte do processo, mas isso não justifica situações de violência. A lei não mudaria tudo e melhoraria o mundo automaticamente, mas seria um bom começo.

Sabemos que as experiências da comunidade LGBTQIA+ não deveriam ser resumidas a casos de homofobia. Por isso, queremos dar luz para as experiências positivas. Com a diversidade em mente, — de expressões, pessoas e movimentos — se você pudesse escolher um aspecto da comunidade LGBTQIA+ sul-coreana para ressaltar e apresentar para o resto do mundo, qual seria?

Seria a Primeira Parada do Orgulho de Seul! Começou com apenas 50 pessoas em 2000 e em 2019 (a última antes da pandemia começar), 120 mil – 150 mil pessoas compareceram. Diferente de alguns eventos super comerciais em outros países, essa ainda é mais como um protesto, um comício e um evento comunitário que apresenta mais artistas, indivíduos, pequenas empresas e organizações LGBTQIA+ reais, ao invés de grandes corporações.

Até onde sei, o Comitê Organizacional é bastante cauteloso e seletivo quando o assunto é patrocínio e não recebe incentivo financeiro do governo. Por mais que essa seja uma das razões para que o evento termine com um débito enorme, tentamos nosso melhor para que ele continue como deveria ser.

Pesquisamos informações sobre a Parada LGBTQIA+ de Seul, mas a informação não é precisa o suficiente. Como você é uma pessoa diretamente ligada ao movimento, poderia nos explicar melhor sobre a questão da prefeitura de Seul não ter permitido a parada acontecer este ano?

Eu publiquei um guia completo em inglês sobre a Parada do Orgulho de Seul em 2022, então confira! No vídeo tem, praticamente, tudo o que eu poderia te contar.

A possibilidade de poder voltar às ruas com a parada tem deixado todos muito felizes, desde que sofremos bastante com as restrições necessárias contra o Covid-19. Qual é a expectativa para o retorno do evento e o que esse retorno às ruas significa neste momento?

Em 2020, depois do surto de Covid-19 em Itaewon, a ignorância e preconceito da mídia coreana e das pessoas causou uma grande demanda para a comunidade LGBTQIA+. Muitas pessoas foram expostas e a comunidade, como um todo, foi dita culpada, mesmo não sendo só as pessoas da comunidade que transmitiram ou foram contaminadas pelo vírus. No final das contas, todas essas pessoas culpadas foram as vítimas. 

Muitos bares e clubes gays enfrentaram mais discriminação por conta das restrições e proibições nos últimos dois anos. Portanto, é muito importante para nós reivindicar esses espaços e nossos direitos para levantarmos nossas vozes mais que nunca.

Nos conte mais sobre você. Como que a Hurricane Kimchi nasceu? Quando você percebeu que deveria abraçar a causa LGBTQIA+ e lutar pelo movimento?

Eu larguei a faculdade de Administração, comecei a fazer arte e me tornar uma pessoa ativa no cenário LGBTQIA+ no início de 2010 — criando arte, fazendo amizades, conhecendo ativistas e figuras na comunidade, etc — e comecei a performar como artista Drag em 2014, só por diversão. Quanto mais eu cavava esse mundo, mais eu percebia que poderia ser mais do que só diversão e sim significar em como eu me expressava como artista (não que a performance Drag só por diversão seja errado).

Isso [performance Drag] também pode ser um ato de ativismo e ser usado para ajudar a comunidade. Eu não só performava, como também organizava e comandava eventos para a comunidade, participando em protestos e comícios de Drag, criando espaços para amigues, para a comunidade LGBTQIA+ e pessoas aliadas.  Em 2020 comecei a escrever e compor minhas próprias músicas, divulgando minha carreira artística como Hurricane Kimchi. 

Vocês podem ouvir meus singles nas principais plataformas de streaming e assistir aos MVs no Youtube!

Você tem desejo de vir ao Brasil um dia? Se sim, nos conte quais são suas curiosidades e o que você gostaria de saber sobre nosso país.

 Eu tenho bons amigos queer brasileiros e conheço muitos artistas criativos e gentis do Brasil que moram aqui. No geral, eu me conecto e acompanho a cultura de um país assistindo muitos filmes para conhecer melhor sobre. Sei que só filmes nem sempre são realistas, mas eu penso que já é alguma coisa, quando você está fisicamente longe e tem um oceano no meio.

Gostaria de poder explorar mais os filmes queer brasileiros e outros filmes, no geral, e, claro, o cenário Drag também. Porém, no momento, remotamente. Mas eu, definitivamente, gostaria de visitar o Brasil um dia. Sem mencionar que eu sei o quão fabulosas a Grag Queen (vencedora de Rainha do Universo) e a Pabllo Vittar são!

Você pode nos dizer como o processo de composição de suas músicas chegam até você?

Normalmente, elas surgem com alguma mensagem ou história que eu gostaria de compartilhar e, então, construo melodias e arranjos instrumentais em cima disso. Porém, tem momentos que eu começo com a melodia que se torna a base da música — “Hurricane”, por exemplo. Eu primeiro pensei na frase “I am a hurricane” (eu sou um furacão) e depois eu criei a música inteira em cima disso. Mas sim, até nesses casos, eu coloco muitos pensamentos dentro das letras, porque eu não quero só criar uma música que seja “chiclete”, mas também que tenha algo real nela. Também quero criar canções menos sérias que sejam fáceis de ouvir, que façam os ouvintes se sentirem bem!

Nos conte quem ou o que inspira você a manter essa força em tempos tão difíceis e também para compor suas músicas.

Para artistas bem conhecidos, James Cameron (diretor de filmes) e Kelly Clarkson (cantora) são duas de algumas pessoas que me inspiram e me fazem seguir adiante e trabalhar duro.

Para drag queens, eu gosto da humildade da Jasmine Rice, Brita Filter e todas as drag queens e kings e coisas na nossa comunidade em Seul me inspiram a ser melhor como pessoa e artista todos os dias!!

Entrevista realizada pelo time K4US | Texto por Ana Carol | Revisão por Hope | Tradução por Annyie e Hope | Por favor, não use o conteúdo dessa entrevista sem linkar o site www.k4us.com.br