Muito se fala sobre o machismo da Coreia do Sul entre os fãs de K-Pop. Mas qual é, de fato, a realidade vivida pelas mulheres coreanas? Conheça a nova onda feminista da Coreia.
Nota da autora: A ideia de explorar esta nova onda feminista da Coreia surgiu quando conheci o trabalho do FFA, através de um protesto Nipple Free, realizado após a participação da atriz e cantora Sulli em um programa de variedade (Night Of Hate Comments). Na ocasião, ela dividiu com o público sua opinião sobre os comentários maldosos que recebia por não usar sutiã. É extremamente triste saber que, ao longo do desenvolvimento desta matéria (antes que pudéssemos finalizá-la), uma das inspirações se foi. Sulli segue como um exemplo da força e perseverança feminina, e torcemos para que mais idols possam usar sua influência para levantar bandeiras e conscientizar seus públicos, como ela fez. Mas antes de tudo, esperamos que as mulheres, dentro e fora dessa indústria, possam se sentir seguras para viver e defender suas ideias.
O ano de 2016 foi marcado por eventos de grande impacto na Coreia do Sul. Além do início dos protestos pela renúncia da ex-presidente Park GeunHye, o país também se viu diante de um crime brutal: o assassinato na estação de Gangnam. Motivado pelo ódio às mulheres, Kim SeongMin esfaqueou uma jovem que nunca havia visto, sob o pretexto de que fora humilhado e ignorado por mulheres ao longo de sua vida.
O crime, por si só, foi motivo de revolta da população. Isso porque a condenação foi baseada unicamente na alegação de doença mental como motivação, desconsiderando a misoginia nas intenções do assassino,
O desfecho do caso impulsionou ainda mais a movimentação popular, especialmente entre as mulheres sul-coreanas. Em meio aos protestos, e neste ambiente de indignação com sociedade e justiça, as discussões sobre direitos e segurança das mulheres foram reaquecidas. E deram maior voz à nova onda feminista da Coreia (feminism reboot), que já vinha se desenhando desde 2015.
Grupos como o Famerz — que já entrevistamos aqui — nasceram nesta época. Já o Flaming Feminist Action (FFA), que chamou atenção recentemente ao participar de um protesto “nipple free”, existia previamente. Mas precisaram passar por uma reorganização após o ocorrido.
“Buscando resistir, realizamos uma conferência de imprensa e formamos uma organização que é composta por ativistas, que pensam as ações e projetos, e membros, que participam da ação juntos”, explica representante do grupo.
A nova onda feminista e suas origens
Essa articulação de grupos feministas, assim como os protestos, são algumas das consequências do caso de Gangnam. “Quando a mulher foi morta, nós fomos mortas. Quando a mulher foi prejudicada, nós também fomos prejudicadas. Nós, que ainda estamos vivas, sobrevivemos por acidente. Essa identificação vai além de uma “irmandade”, que é simplesmente um conceito. Isso está em um nível de instinto de sobrevivência, então o caso de Gangnam acendeu o desespero e senso de urgência das mulheres”, desabafam representantes do DSO (Digital Sexual Crime Out), grupo que busca combater crimes sexuais online.
Além de se tornar um infeliz marco na história do movimento, o crime mudou também a forma de muitas mulheres se perceberem diante da sociedade. Uma sociedade onde, apenas em 2016, elas foram vítimas de mais de 80% dos casos de crimes brutais (assassinato, assalto, estupro e incêndio criminoso) registrados no país. Os dados, revelados pelo Instituto de Desenvolvimento da Mulher Coreana (KWDI), apontam ainda para o crescimento desses números em 2017, quando, do total de 36 mil casos de crimes brutais relatados, as mulheres foram vítimas em 30,4 mil.
Fora os delitos registrados, existe ainda a incidência de crimes não relatados e a consequência deste conjunto: uma onda de insegurança que se perpetua por todos os ambientes.
Segundo o grupo Flaming Feminist Action, o cotidiano da população feminina na Coreia é imerso em uma realidade de medo e ansiedade. “O medo de que alguém possa estar me filmando no banheiro, de que a pessoa que mais amo se torne a pessoa que mais me machuca — não apenas mentalmente, mas também fisicamente —, e o medo de que meu caminho para casa seja a última caminhada da minha vida. Essas ansiedades roubam nosso tempo e liberdade”.
A epidemia de câmeras escondidas
Em 2018, uma série de manifestações levou mais de 22 mil mulheres até a estação de Hyehwa, em Seul, para protestar contra o vazamento de imagens gravadas ilegalmente por câmeras escondidas.
O movimento teve início quando a polícia prontamente investigou e prendeu uma mulher que havia fotografado e divulgado online imagens de um modelo nu. Enquanto os casos que vitimizaram mais de 28 mil mulheres, entre os anos de 2012 e 2017, foram tratados sem a devida seriedade.
Apesar das demonstrações de Hyehwa em 2018, e os casos envolvendo idols em 2019, a prática criminosa vem penetrando os hábitos sul-coreanos desde o início dos anos 2000. Foi nesta época que a divulgação de imagens ilegais passou a crescer no país, através do do portal SoraNet. O site costumava ser um dos maiores domínios de conteúdo pornográfico de lá, e sua grande concentração de filmagens feitas e/ou divulgadas ilegalmente ajudou a borrar o limite entre pornografia e crime sexual online.
Crime sexual online se torna lucrativo
Essa difusa relação entre casos de vazamento de imagens e pornografia reflete diretamente nos altos índices de crimes digitais sexuais. Não apenas por seu consumo, mas também pelo lucro que este consumo proporciona.
Em março deste ano, por exemplo, quatro homens foram presos por um esquema de transmissões clandestinas. Eles distribuíam imagens de câmeras escondidas em quartos de 30 hotéis espalhados pelo país. Estima-se que, só neste caso, mais de 1,6 mil pessoas tenham sido vítimas, e que 4 mil tenham assistido às transmissões. Dentro do grupo dos “espectadores”, havia ainda pessoas que chegavam a pagar por exclusividades, como replay de determinados conteúdos.
Justiça registra 39,8 mil casos de câmera escondida entre 2007 e 2017
Os números de crimes online, no entanto, vão muito além das cifras. De acordo com as estatísticas disponibilizadas pela justiça coreana, entre 2007 e 2015, o número de casos de spy cam registrados no país saltou de 564 para 7.730 — desde então, os registros caíram para 5.249, em 2016, e subiram novamente em 2017, totalizando 6.615 casos.
“Os homens coreanos consideram mulheres como pornografia”, declaram integrantes do Digital Sexual Crime Out, organização feminista que busca combater os crimes digitais sexuais. Formado por mulheres na casa de seus 20 e 30 anos, o grupo vem se articulando desde 2015, durante as denúncias do SoraNet, e se oficializou em 2016. Desde então, elas trabalham para impedir que esses crimes sexuais praticados na internet continuem se propagando.
Segundo o DSO, a cultura do estupro — e sua incessante culpabilização da vítima — faz com que os homens não entendam que práticas como o vazamento de imagens são, de fato, crimes. Nas palavras das ativistas, o comportamento pode ser caracterizado como “um jogo de meninos ou homens safados”.
Para o grupo, os crimes digitais também falam muito sobre a modernização de apenas alguns aspectos da sociedade: “A Coreia alcançou um rápido avanço econômico e tecnológico, no entanto, a consciência social, sentimentos sobre legislação e sensibilidade aos direitos humanos e igualdade de gênero não se desenvolveram na mesma velocidade”, contextualizam as integrantes do DSO.
Idols e a ocupação da nova onda feminista online
O comportamento que permite a continuação dos crimes contra as mulheres apontam para um problema enraizado na sociedade — especialmente entre os homens —. E neste ano, isso tudo foi reafirmado pela divulgação dos casos que revelaram o envolvimento de diversos idols no compartilhamento de filmagens ilegais. “Seria mais apropriado usar as palavras “deplorável” e “furiosas” do que dizer que nos chocamos [com o caso]”, contam as representantes do DSO.
Leia também: K-Idols e a decepção masculina de cada dia
A falta de resolução ou seriedade no tratamento dos casos também não é surpresa para as ativistas do Flaming Feminist Action. Elas contam que a revolta que dividem com o público não pode trazer punição imediata, a menos que a mentalidade da sociedade mude. E isso inclui “polícia e justiça, que atualmente se tornam cúmplices ou pegam leve com os criminosos,” explicam.
“Como as pessoas poderosas da sociedade coreana são próximas umas das outras, algo visto nos casos recentes, será necessário que o povo continue levantando a voz para fazer disso um “assunto problemático””.
Com o envolvimento até mesmo de idols em crimes sexuais online, restou às mulheres o papel de impor resistência no ambiente virtual. As redes sociais, por exemplo, são amplamente ocupadas por grupos e expressões feministas. “Nos unimos online e nos encontramos offline. Online e Offline não importam quando se faz a diferença”, explica Lee MinKyung, autora de “We Need Language”, um dos livros sobre feminismo mais vendidos na Coreia.
We Need Language, best-seller sobre estudos de gênero / Autora Lee MinKyung em palestra
Movimento inclui conhecimento difundido online
Além de articulações para encontros offline e combate a misoginia online, muitos grupos usam a internet para difundir conhecimento. O título assinado por Minkyung é um exemplo desta potência. Após se tornar um dos responsáveis pelo crescimento de 178% das vendas de livros sobre estudos de gênero, em 2016, a obra segue entre a lista de leituras indicadas em perfis feministas no instagram — rede que coleciona publicações com diferentes indicações.
“Tendemos a encontrar informações através da leitura e pensamos facilmente em um livro como introdução para um novo assunto”, explica a autora sobre o grande número de publicações de recomendação de leitura.
Dividindo espaço com os livros, as tags relacionadas ao feminismo coreano nas redes sociais também são alimentadas por muitas ilustrações similares ao formato de webtoons, gênero narrativo de grande expressividade dentro do país.
O estigma do feminismo radical
Mundialmente o feminismo radical já carrega diferentes estigmas relacionados, principalmente, a intolerância à determinadas minorias. Na Coreia não é diferente. Um caso que ganhou popularidade e apenas reforçou essa má impressão aconteceu em 2017. Na ocasião, uma suposta feminista radical publicou no fórum Megalia, uma declaração de apologia a pedofilia direcionada a jovens garotos.
Apesar de ter concentrado uma parte dos movimentos contra o SoraNet e outros casos de câmera escondida em 2015, o Megalia, acabou recebendo a mesma reputação sustentada por suas participantes. O fórum coleciona controvérsias que vão desde a publicação de imagens de pênis mutilados até a exposição de homens gays casados com mulheres.
E por isso o Megalia foi considerado por muitos a versão feminina de outro fórum cotroverso, o Ilbe*. O espaço, utilizado majoritariamente por jovens homens de extrema direita, é conhecido pela misoginia e dominado por publicações de apologia a violência contra as mulheres.
“Feministas radicais defendem os direitos das vítimas”
Para as ativistas do FFA, algumas feministas radicais obedecem uma lógica espelhada. E, ao perpetuarem ideias perigosas, como a violência contra jovens rapazes, refletem a cultura de objetificação da mulher. É como se elas pegassem a opressão sofrida pelas mulheres e reproduzissem. Apenas mudando o alvo.
Segundo o DSO, “na Coreia, todas as gerações de homens estão cometendo violência contra todas as gerações de mulheres. Ao invés de gastar tempo se importando com os predadores, as feministas radicais coreanas defendem e representam os direitos das vítimas e oferecem a elas a voz para lutar.”
O Flaming Feminist Action aponta ainda para o fato de que esta linha do movimento não é formada apenas por mulheres com motivações criminosas. “Existem feministas que expressam ódio a outras minorias. Contudo, não podemos dizer que são a maioria das feministas radicais coreanas. O que é mencionado como “ódio a minorias” têm seus contextos. Feministas radicais tentaram apontar e criticar não todas as minorias sexuais, mas a misoginia na cultura gay”, explicam.
Geração digital, o papel da educação e o futuro do feminismo
O avanço tecnológico é a essência da nova onda feminista na Coreia. Segundo as integrantes do Digital Sexual Crime Out, a natureza digital diferencia a nova geração do movimento das gerações anteriores. E a luta nos dias de hoje une o que já existia no universo acadêmico ao ativismo de grupos.
As próximas gerações do feminismo sul-coreano, inclusive, devem trazer ainda novas características. Isso porque elas já nascem em um mundo hiperconectado, diferente da onda atual.
Boa parte das ativistas que hoje lotam ruas em protestos estão na faixa dos 20-30 anos (geração característica da nova onda feminista da Coreia). E elas tiveram seu primeiro contato com o movimento após a adolescência.
Mas este envolvimento “tardio” não foi empecilho para que aderissem à luta por igualdade.
Através de uma pesquisa para entender a visão de jovens na casa dos 20 anos sobre o feminismo, o instituto KDWI revelou novas perspectivas. Quase 80% das mulheres participantes reconhecem a seriedade dos estereótipos de gênero e discriminação contra as mulheres. Já entre os homens a disputa foi acirrada:
- 42,6% concordam com as mulheres e também entendem a seriedade do problema
- 55,2% se opõem e não julgam o problema como algo grave
“Igualdade de gênero deveria ser incluída no sistema educacional”
Para nossas entrevistadas, uma das soluções, para que tanto mulheres quanto homens parem de reproduzir os discursos e práticas machistas, pode estar dentro das salas de aula. “Eu realmente acredito que a igualdade de gênero deveria ser incluída no sistema educacional. Individualmente, as pessoas têm feito um ótimo trabalho, mas elas estão substituindo temporariamente um trabalho institucional. E isso não pode ser mantido para sempre”, conta MinKyung.
As ativistas do Flaming Feminist Action explicam ainda que a menos que você cresça em um ambiente diferenciado, torna-se difícil o contato com a ideia de igualdade. “A próxima geração, incluindo mulheres e homens, deveria ser oficialmente educada sobre como o feminismo é um movimento de correção de injustiças, e entender sua legitimidade.”, declara o DSO sobre o assunto.
Mas enquanto a igualdade de gênero não é normalizada nas salas de aula, o potencial das redes cresce. Meninas passam a encontrara o termo “feminismo” com mais facilidade. E a imersão na vida online permite que novos grupos cresçam e se manifestem.
Além disso, as redes permitem o acesso à realidade de mulheres de outras partes do mundo. E o intercâmbio cultural traz novos olhares, que refletem em novos pontos de vista e se desdobram em novas atitudes.
A menos que as crescentes ondas de conservadorismo ganhem mais força no país, a tendência para as próximas gerações é agregar novos discursos a conhecimentos, experiências e conquistas de lutas anteriores realizadas pelo movimento. De Yu GwanSun à nova onda feminista da Coreia.
*Saiba mais sobre o Ilbe na entrevista concedida pelo Famerz a K4US.
A K4US agradece a colaboração dos grupos Flaming Feminist Action e Digital Sexual Crime Out, e da autora Lee MinKyung que se dedicaram completamente em responder nossas perguntas e dividir suas perspectivas com o público brasileiro.
Entrevistas e texto por Bea @ Equipe de redação da K4US
Não remover sem os devidos créditos
www.K4US.com.br