O filme “Ainda Estou Aqui”, vencedor da categoria de Melhor Filme Internacional do Oscar, estreou no Festival Internacional de Cinema de Jeonju, na Coreia do Sul, e as sessões do longa no evento foram esgotadas. A narrativa de Walter Salles, que aborda o período da ditadura militar no Brasil, ressoou fortemente com o passado, e até mesmo traços do presente, vivido pelos sul-coreanos.
Ambos os países enfrentaram governos ditatoriais durante períodos muito próximos – no Brasil o regime autoritário perdurou de 1964 a 1985, enquanto na Coreia do Sul durou de 1961 a 1987, sem contar o período da invasão japonesa no país e o governo autoritário de Syngman Rhee. Nesse contexto de semelhança, Moon Seok, que está entre os responsáveis pela organização do festival, destacou que a luta e a jornada brasileira rumo à democracia é a mesma que a da Coreia do Sul.
Junto disso, Moon também mencionou que um ponto que fortalece ainda mais a ligação com o longa brasileiro é a questão da opressão e a forma como o povo demonstra resistência. Partindo desse ponto, vale lembrar que a Coreia do Sul teve fortes movimentos que se posicionaram contra a ditadura no país, tomando as ruas em protestos e em busca de recuperar a democracia, que resultaram em uma repressão violenta por parte dos militares, como o Massacre de Gwangju, durante o governo de Chun Doo Hwan.
Aqueles no poder mobilizaram os militares e a polícia para prender inúmeras pessoas, muitas das quais morreram em circunstâncias desconhecidas ou suspeitas.
– Moon Seok para a Folha de S. Paulo.
Ao longo desse período, diversas famílias sul-coreanas também enfrentaram perdas dolorosas de entes queridos, assim como Eunice Paiva, interpretada por Fernanda Torres no filme. Esse fator ganhou uma proporção ainda maior após o Massacre de Gwangju, resultando em um grande número de mortos e desaparecidos, algo que também é tratado de forma muito sensível no livro “Atos Humanos”, de Han Kang, ganhadora do prêmio Nobel de Literatura de 2024.
Essas questões voltaram ainda mais fortes com os ocorridos do dia 3 de dezembro de 2024, quando o ex-presidente Yoon Suk Yeol declarou lei marcial no país, na tentativa de um golpe. Após o ocorrido, a população tomou as ruas pedindo o impeachment do então presidente, processo que teve início no dia 4 de dezembro de 2024. Como resultado, a Coreia do Sul ainda enfrenta uma crise política, com frequentes trocas de presidente interino.
Assim, a situação atual, assim como os acontecimentos do passado, influenciaram na seleção de filmes para o festival, que criou a seção chamada “Novamente, Rumo à Democracia”, contando com produções que tratam a respeito da luta pela democracia em diferentes países.
A popularidade de tais histórias também serve como um lembrete de que nossa democracia permanece frágil.
– Moon Seok
Sucesso na China
Na China, “Ainda Estou Aqui” estreou no 15º Festival Internacional de Cinema de Pequim no último sábado de abril (26), com ingressos esgotados em menos de duas horas para a primeira exibição.
O esgotamento dos ingressos na primeira semana não pode ser considerado a única vitória do filme no país, uma vez que a autorização para sua transmissão já é um grande marco. O vencedor do Oscar é um dos 34 filmes estrangeiros que a China permitiu ser transmitido, um ganho do processo complexo da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (APEX).
“我仍在此”, como ficou traduzido país, entrará em cartaz somente a partir do dia 16 de maio, mas já é visível um movimento no Weibo, rede social chinesa, de comentários sobre o filme e as expectativas em relação a ele:
“De uma mãe desesperada a uma ativista dos direitos humanos, Fernanda Torres contribuiu com habilidades de atuação de nível didático. Cada olhar é como um “trovão silencioso” e ela consegue fazer as pessoas chorarem mesmo sem demonstrar a dor ao expor suas feridas” – Tradução livre da parte destacada.
O público composto majoritariamente por mulheres jovens, destacaram, assim como na rede, a atuação sensível de Fernanda, que se relaciona diretamente a tradução da obra para o mandarim: Eunice continua ali, lutando não só por sua família e pelo esposo, mas também pelos seus direitos, disposta a enfrentar tudo o que aconteceu.
Ao contrário do público sul-coreano, que lotou as salas de cinema principalmente pela proximidade com o movimento ditatorial nos dois países, a entrada de filmes como “Ainda Estou Aqui” e outras obras estrangeiras no território chinês está diretamente ligada à guerra comercial entre China e Estados Unidos.
A Administração Nacional de Cinema da China já havia comentado sobre a redução da importação de filmes estadunidenses, fazendo com que uma parte do público chinês acreditasse que seria uma boa oportunidade para introduzir obras de outros países, como o Brasil.
Para alguns, essa é a forma ideal de expandir as perspectivas de mundo, tanto de maneira acadêmica quanto cultural, ao entender melhor o desenvolvimento e cultura de outros países fora da esfera hollywoodiana. A diversidade da 15º edição do Festival de Pequim é um exemplo dessa movimentação e a tendência é ver cada vez mais obras diversas tomando o restrito mercado chinês e contando histórias que muitas vezes são desconhecidas para o público, como a ditadura brasileira:
Eu só tinha contato com essas informações [da ditadura militar brasileira] por livros de história. Mas o filme me proporcionou uma perspectiva mais concreta e intimista – uma visão do cotidiano que me permitiu vivenciar […] o que foi a dor das pessoas e, sobretudo, formar uma imagem nítida da crueldade do regime ditatorial.
– Relato compartilhado por Zhang Yuanying em entrevista ao Brasil de Fato.