Vez ou outra esse arquétipo investigativo é trazido à tona, invocando em nós espectadores e leitores, emoções conflitantes entre justiça e vingança, amor e ódio, ordem e caos. House M.D foi um exemplo ocidental recente de um reaproveitamento dessa fórmula. Penso que a criatividade não necessariamente deriva de criar algo 100% único mas sim, saber empregar de forma criativa e injuntiva, características de variados gêneros, nichos e arquétipos.

Stranger (Secret Forest ou Forest of Secrets) nos coloca nessa jornada, com múltiplas camadas e aqui temos a dualidade paradoxal de dois protagonistas, um fisiologicamente incapaz de sentir e a outra, a humanidade em pessoa. E fazendo rima à essa narrativa, nossa review também será dividida em duas complementares partes.

Esse K-Drama que foi produzido pelo Signal Entertainment Group, transmitido na Coréia pela tvN e mundialmente via Netflix já em seu primeiro contato demonstra ser uma produção esteticamente ambiciosa. A contar por seu elenco principal, que comporta atores do porte de Jo Seung-woo (Jekyll & Hyde, Marathon, ambos amplamente premiados) e Bae Doona (Sympathy for Mr. Vengeance, Cloud Atlas, Jupiter Ascending, obras notórias mundialmente). Não apenas parando por aí porém, notamos atores com atuação e histórico admirável como Yoo Jae-myung ou Lee Geung-young, veteranos da cinematografia coreana, que dão ainda mais credibilidade e peso à obra.

É notável que o tema da corrupção é um problema endêmico em vários países do mundo, e as relações entre a iniciativa pública e privada na Coréia do Sul são (assim como em nossa terra brasileira) ocasionalmente alvo de escrutínio das autoridades competentes. Stranger nos joga justamente no centro de um desses escândalos, suas ressonâncias, repercussões e trágicas consequências. E tenho que elogiar a audácia das Kproductions nesse sentido, por elencar em seu horário nobre de sábados e domingos, obras que cerceiem temas como esse. Cá entre nós, vejo pouca possibilidade de algo assim ocorrendo na TV brasileira e nosso povo poderia fazer bom uso desse tipo de conteúdo.

O protagonista Si-mok é um importante membro da promotoria pública Sul-Coreana e no início da trama encontra-se prestes a obter importantes evidências sobre um conchavo do qual ele mesmo não imagina a escala. Naturalmente seu informante é eliminado do circuito de forma misteriosa, e em pouco tempo, um homem falsamente acusado pelo crime é sentenciado e eventualmente, suicida-se, clamando por justiça seja dos homens ou dos deuses. O desdobramento estranhamente rápido desses eventos capta a atenção do astuto protagonista, que passa a investigar a situação de uma forma muito mais intensiva e sabiamente mais cautelosa.

Jo Seung-woo, ator que interpreta Si-mok, me parece brilhante nessa atuação. Um importante adendo sobre o personagem é necessário: quando ainda jovem, o promotor passou por uma necessária cirurgia cerebral que como efeito colateral, o deixou aparamente incapaz de sentir empatia ou emoções. Dessa forma, qualquer ator que viesse a encarar o desafio de dar vida a esse personagem, teria a tarefa de conseguir cativar um público espectador, contudo com recursos de atuação restritos às limitações fisiológicas do próprio Si-mok. A decisão de atuação e roteiro aqui é acertada contudo, pois através de uma inteligência, acurácia e acima de tudo um senso de justiça altamente racionalista e lógico, conseguimos sentir empatia e carinho por um personagem que provavelmente não seria capaz de sentir o mesmo por nós…rs.

Inclusive através dessa esfinge que Si-mok representa na história, passamos por vários momentos nos quais podemos até mesmo duvidar de suas intenções e ações. Em mais de um momento a trama inteligentemente nos coloca em posição de duvidar desse homem, que apesar de acompanharmos através dos 16 episódios desse k-drama, ainda parece nos surpreender até nos minutos finais.

Bae Doona, que considero a outra protagonista da trama, é o contraste que humaniza Si-mok, mas é mais do que apenas um artifício “Watson” só para enaltecer a genialidade do protagonista. O toque de humanidade que a tenente da polícia Han Yeo-jin oferece à obra nos permite sentir alguns momentos genuínos de alegria e estima por aqueles que são sumariamente vitimados pelo esquema de corrupção que é o motor de Stranger. Desde a mãe de um homem justamente condenado, passando por um jovem apaixonado ou uma eventual pretendente de Si-mok (mesmo que isso deixe a tenente visivelmente consternada). Além de todos esses pontos, a tenente tem claramente sua inteligência e dedução própria, conseguindo não somente acessos a informações que sua contra-parte protagonista não conseguiria em seus métodos mais objetivos, mas também representa um lado ideológico que em dados momentos, oposiciona-se ao de Si-mok, apesar dos interesses claramente em comum dos dois personagens. A atriz aqui se apresenta carismática e sinceramente, tenho o ditado pessoal que qualquer cena que a atriz Bae Doona esteja nela, é claramente uma boa cena.

Falando em cenas, desde o primeiro episódio de Stranger senti um instinto quase natural de cumprimentar o diretor pelo trabalho desempenhado. Eu passei boa parte desse drama esperando que Ahn Gil-Ho tivesse mais oportunidades de desenrolar cenas de ação. Evidentemente o diretor tem um olhar especial para suas cenas, sabendo muito bem fazer uso da linguagem visual subjetiva para passar conceitos abstratos. Aqui os embates entre os personagens contudo são na maioria das vezes, em tribunais, salas de promotorias. São mais no campo das ideias, argumentações e jogadas de estratégia, como em uma partida de xadrez.

O diretor faz uso em maioria de suas cenas de uma técnica de câmera única, bem antiga, mas que quando bem empregada concede algumas características diferenciais na obra. Em cenas com mais de um personagem, onde habitualmente os diretores optam por ter várias câmeras para gravação de cada uma das personas atuantes, a técnica de single câmera situa apenas uma câmera que é utilizada para captar as falas e ações dos personagens, bem como mudanças de foco e ângulos.

Em termos técnicos Stranger é executado quase que com cinematografia digna de filmes. O roteiro é intensivamente dedicado em explorar os detalhes e por menores da espiral de corrupções existentes no circuito dos personagens, e muitas vezes para descobrirmos e entendermos melhor as motivações de cada um, inclusive a estranha dinâmica do casal Lee Yoon-beom e Yoon Se-ah, teremos que aguardar com aspectos dos casos e ações investigados avancem.

Stranger contudo não se deixa ser conduzido apenas por dois protagonistas interessantes. O cast de personagens coadjunvantes, com destaque para agentes da mesma promotoria de Si-mok ou policiais da mesma delegacia de Yeo-jin são bastante representativos, e a estratégia de manter um grupo menor de personagens principais (o círculo principal da trama tem pouco mais de 10 personagens) faz com o espectador consiga focar mais sua atenção nos trâmites políticos que circundam os poderes envolvidos no drama.

Isso não significa porém que o Drama não tenha seus momentos de alívio cômico, diversão ou até mesmo ternura e relacionamentos significantes entre personagens. Esse é um K-drama sóbrio, realista em sua abordagem e que pauta suas mensagens através de atuações de alto nível, mesmo em seus momentos mais sutis e minimalistas.

A segunda parte desse review abordará aspectos mais subjetivos, como interpretação, desdobramento da trama e o desenvolvimento dos personagens ao longo da trama. Afinal, essa primeira parte carinhosamente apelidada de “Si-mok” nos dá uma perspectiva mais objetiva da trama, sendo tão incompleta quanto o promotor que aprendemos a gostar ao longo dos 16 episódios.

(Review de autoria de Satir)